Variante contra a malária
Liderada por cientistas da UFMG, pesquisa identifica alteração em gene que produz resistência contra a doença
Doença infecciosa transmitida por mosquitos cujas larvas se desenvolvem em reservatórios de água parada, a malária é endêmica em algumas regiões quentes e chuvosas do planeta, como a África subsaariana. Com prevalência associada a populações muito pobres, a malária é também fator de risco para o linfoma de Burkitt – tipo de câncer pediátrico comum naquela porção do continente africano.
“Trata-se de um grave problema de saúde global, ao qual se deve significativa taxa de mortalidade”, comenta o professor Eduardo Tarazona, do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG. Juntamente com o pesquisador ugandês Sam Mbulaiteye, do Instituto Nacional do Câncer (NCI), dos Estados Unidos, a equipe de Tarazona liderou a pesquisa que identificou variante no gene ATP2B4, com frequência aumentada na população de Uganda, que torna seus portadores mais resistentes à malária. “A variante é, por consequência, candidata a ser protetiva também contra o linfoma de Burkitt. Essa confirmação, no entanto, ainda depende de pesquisas mais aprofundadas”, avalia Tarazona.
Com fundamento em métodos próprios dos estudos de evolução, a equipe de cientistas analisou os genomas de 1,7 mil indivíduos que habitam a África subsaariana. O estudo resultou no artigo Genetic signatures of gene flow and malaria-driven natural selection in sub-Saharan populations of the endemic Burkitt Lymphoma Belt, publicado no periódico norte-americano PLoS Genetics, um dos mais prestigiados mundialmente na área de genética.
Segundo Tarazona, o trabalho, multicêntrico e multidisciplinar, é um exemplo da liderança da UFMG em internacionalização. Entre os autores, figuram Mateus Gouveia, ex-doutorando em Genética (UFMG) que realizou estágio sanduíche nos Estados Unidos, Victor Borda, pesquisador peruano que faz doutorado em Bioinformática na UFMG com bolsa da Capes, Kelly Nunes, do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo (USP), Thiago Leal, pesquisador com pós-doutorado na UFMG, e mais 24 cientistas da Fundação Oswaldo Cruz e de instituições africanas e norte-americanas.
Inspiração em Darwin
Tarazona sublinha que a UFMG é referência mundial em análise de dados e bioinformática, o que justificou o convite para o projeto em parceria com o NCI. “Eles nos convidaram porque temos excelência reconhecida nessa área, tanto pela infraestrutura bioinformática quanto pelo know-how. Nossa colaboração com o instituto americano é longa e duradoura”, observa o professor. Primeiro autor do trabalho, Mateus Gouveia foi chamado a discutir políticas de combate à malária e ao linfoma com o primeiro-ministro de Uganda, um dos países mais afetados pelo problema.
A técnica de mapeamento genético utilizada pela equipe tem fundamento na teoria da seleção natural, desenvolvida no século 19 pelo naturalista britânico Charles Darwin. “A alta frequência da variante tem sido determinada pela seleção natural positiva. Sua prevalência aumenta na medida em que ela oferece resistência à doença”, explica Tarazona.
De acordo com o professor, a perspectiva evolutiva é cada vez mais adotada por pesquisadores de todo o mundo – inclusive em universidades de países muçulmanos, onde, durante muito tempo, as restrições impostas pelo paradigma religioso confrontaram a ciência. “O enfoque evolutivo viabiliza a identificação de variantes importantes do ponto de vista médico, que predispõem ou protegem a saúde de determinada população”, informa o professor do ICB.
As migrações históricas, de acordo com o cientista, foram responsáveis por levar as variantes de suscetibilidade à malária e ao linfoma de Burkitt para a região investigada. “Existe uma ideia corrente – e equivocada – de que as populações africanas se desenvolveram como tribos isoladas. Na verdade, comércio e migrações intensas transformaram a região”, elucida Tarazona.
O próximo passo, segundo o professor, é compreender detalhadamente o mecanismo por meio do qual a variante opera gerando resistência contra a malária. “Entender o conjunto de processos e vias metabólicas que produzem uma doença e os meios pelos quais os organismos se protegem pode nos conduzir a novos alvos e inspirar outras formas de combater as doenças. Com base nisso, é possível pensar, em longo prazo, possíveis caminhos como terapias ou reposicionamento de fármacos”, projeta Eduardo Tarazona.