A balbúrdia do contingenciamento
A comunidade acadêmica ficou chocada com o contingenciamento de recursos imposto pelo governo federal e com as declarações do ministro da Educação, Abraham Weintraub. Primeiro, em virtude da afirmação de que o bloqueio de R$5,8 bilhões visaria conter a “balbúrdia” dos campi (eventos políticos e manifestações partidárias); segundo, porque a reversão do contingenciamento dependeria da “aprovação da nova Previdência”. Por um lado, a motivação do ato evidenciou uma espécie de barganha política para conseguir apoio para a aprovação de reformas; por outro, ficou claro que limitações à liberdade de expressão seriam necessárias para afastar os cortes.
A intenção de interferir na condução administrativa e nos conteúdos pedagógicos das universidades constitui ofensa à autonomia universitária assegurada pelo art. 207 da Constituição e ao art. 206, III, que garante o “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”. Se essa for a motivação, ofendida estaria a moralidade administrativa e o princípio da continuidade da prestação dos serviços públicos.
Apenas se for provado que não existem outras despesas passíveis de contingenciamento é que as verbas essenciais para educação e saúde podem ser cortadas.
No Brasil, as universidades públicas são responsáveis por 95% da pesquisa científica. Das 10 melhores universidades da América Latina, seis são brasileiras e sofreram contingenciamento de recursos. A UFMG, por exemplo, liderou ranking das instituições depositantes de patentes em 2016 e, de acordo com o Times Higher Education, figura entre as melhores universidades do mundo. Assim, o uso do contingenciamento em desvio de finalidade parece ter ficado evidenciado pela frase: Universidades que, em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico, estiverem fazendo balbúrdia, terão verbas reduzidas. Quanto aos “eventos políticos” e “manifestações partidárias” dentro das universidades, é preciso gizar que, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 548, o STF já se pronunciou e assegurou a livre manifestação do pensamento e de ideias, estabelecendo que a autonomia universitária é princípio constitucional.
Como lembra o filósofo do direito Joseph Raz, a autonomia é fundamento da liberdade e pressupõe a possibilidade de livre escolha de objetivos e relações (sem coações). Autonomia, porém, não se confunde com soberania. A autonomia universitária é didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial e não confere imunidade ao cometimento de crimes (destruição do patrimônio público, pichações etc.). Entretanto, esses crimes não podem ser combatidos com contingenciamento; ao contrário, exigem recursos. A autonomia universitária existe para que instituições de ensino não fiquem reféns de governos e para que o pluralismo, componente essencial da democracia, seja assegurado. Debates políticos nas universidades são bem-vindos porque é assim que se constrói uma democracia.
Como estabelece o art. 55 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, cabe à União assegurar recursos suficientes para manutenção e desenvolvimento das instituições de educação superior por ela mantidas. O dispositivo densifica as obrigações constitucionais consagradas pelos artigos 205 a 208 da Carta de 1988. Em outras palavras, a Constituição, que consagra expressamente o direito fundamental à educação, firma, como contrapartida, o dever de a União manter as universidades federais com recursos suficientes. A Constituição expressa uma obrigação reforçada e prioritária das pessoas políticas para com a educação. O direito reforçado à educação reclama uma obrigação igualmente reforçada de oferta de recursos suficientes para a manutenção do ensino. É nessa toada, sob o ponto de vista financeiro, que se deve entender a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF.)
A LRF, em seu art. 9, § 2º, estabelece que não podem ser objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais. No entanto, o contingenciamento foi substancial e afetou a possibilidade de funcionamento regular das universidades. Nesse compasso, os cortes impossibilitam o cumprimento de dever de lastro constitucional. Da mesma forma, ultrapassam o poder de contingenciamento porque afetam uma obrigação legal. A propósito, a LRF apenas equiparou o pagamento de dívidas à obrigação constitucional. No entanto, o tratamento constitucional reforçado do direito à educação e à saúde permite que se afirme que os recursos destinados a essas áreas têm prevalência e não podem ser afetados para viabilizar o pagamento de dívidas. A Constituição não permite que se pague crédito de bancos com sangue, morte e ignorância. Apenas se for provado que não existem outras despesas passíveis de contingenciamento é que as verbas essenciais para educação e saúde podem ser cortadas.
Na prática, o contingenciamento não pode ferir a autonomia universitária. O bloqueio de 30% compromete o pagamento de serviços básicos de manutenção (água, luz etc.) e a aquisição de insumos e suprimentos essenciais para salas de aula e laboratórios, entre outros. De fato, “não há eficiência administrativa que supere um corte de tamanho monte”, como registrou, em nota, a Reitoria da UFMG. Se é dever da União garantir recursos suficientes para a manutenção das instituições de educação superior, a autonomia apenas pode ser assegurada com recursos que garantam o funcionamento regular das universidades.
Se o Decreto 9.741/2019 não prima pela transparência, nas declarações do ministro sobraram ameaças de retaliação financeira para impedir o livre exercício do pensar. Para fazer o contingenciamento de R$ 29,8 bilhões, deveria o Executivo ter observado o que dispõe a Constituição e a LRF; o bloqueio anunciado de R$5,83 bilhões é inconstitucional e ofende a LRF na medida em que fere a autonomia universitária e impede o cumprimento de dever constitucional.