‘O sol vermelho de raiva’
Começo justificando as aspas do título: ele não é criação minha, mas de um amigo que escreveu um livro de poemas batizado com esse nome. Sem conseguir ser muito precisa, creio que foi entre 1992 e 1993, e, por ter sido uma produção independente, lamento não ter hoje comigo um exemplar. Se tivesse, a atual conjuntura sociopolítica me motivaria, certamente, a voltar a ele.
O livro foi escrito na Serra dos Carajás, onde eu e o autor fomos colegas de trabalho durante um tempo. Nos quatro anos em que lá permaneci, convivi, nos meses de seca, com um cenário peculiar: o céu à tarde se tingia de um laranja muito forte, e o sol se transformava numa bola de fogo. Se não fossem as razões que desencadeavam o fenômeno, poderia dizer que chegava a ser bonito. Mas não posso achar bonito ver a natureza se tingir de vermelho por causa da ação irresponsável do homem. Era tempo das queimadas. Do céu via-se a fuligem cair em diminutas partículas como pingos de chuva. Sim, era tempo das queimadas, como se fosse um fenômeno típico da estação. E tomando as dores do Sol é que esse meu amigo escreveu o livro O Sol vermelho de raiva.
Nos últimos dias, as redes sociais exibiram inúmeras fotos de um cenário que me lembrou o da época em que lá vivi: 1991 a 1994, ou seja, há 28 anos. Imagens da Amazônia em chamas desfilaram nos perfis de celebridades e de anônimos. Cada um escolheu a foto que lhe parecia mais impactante para protestar contra as queimadas. O presidente da França, Emmanuel Macron, foi infeliz na sua escolha. Usou uma foto fake, ou seja, o registro de um cenário antigo para protestar e convidar ao protesto contra uma ação de hoje. O presidente poderia ter sido mais cuidadoso na sua seleção, mas a intenção aqui não é criticá-lo, e, sim, dizer que se ele, por descuido, utilizou uma foto antiga é porque faz tempo que a situação existe e mereceu, em épocas outras, não só registros fotográficos como relatos e estudos. O livro Floresta em chamas: impactos e prevenção do fogo na Amazônia, escrito por Daniel Nepstad, Adriana Moreira e Ane Alencar, publicado em 1999, pode ser um exemplo. Num breve passeio pelo sumário, seleciono, aleatoriamente, alguns títulos de capítulos para antecipar ao leitor o conteúdo da obra: O problema do fogo na Amazônia, A inflamabilidade da floresta, A Amazônia está queimando, Um estudo sobre o fogo nas propriedades rurais da Amazônia, A quem pertencem as áreas que estão queimando?, Os impactos ecológicos do fogo, O fogo no contexto das fronteiras de ocupação da Amazônia, As soluções para o problema do fogo na Amazônia e O fogo na Amazônia: cenário futuro.
Se não fossem as razões que desencadeavam o fenômeno, poderia dizer que chegava a ser bonito. Mas não posso achar bonito ver a natureza se tingir de vermelho por causa da ação irresponsável do homem. Era tempo das queimadas.
Nesse último capítulo, os autores profetizam: “O problema dos incêndios acidentais na Amazônia pode piorar nos próximos anos. Os eventos El Niño, que estão associados com secas severas em grande parte da região, têm sido mais frequentes e intensos nos últimos quinze anos. Um grupo de climatologistas concluiu recentemente que a maior frequência desses eventos está associada ao acúmulo de dióxido de carbono na atmosfera e poderia, portanto, representar o início de um cenário climático de longo prazo. A redução das chuvas na região é um dos efeitos previstos do desmatamento em larga escala na Amazônia [...] Os incêndios podem também aumentar em número nos próximos anos devido à ocupação das fronteiras agrícolas e madeireiras. Quando estradas, tais como a Santarém-Cuiabá, a Manaus-Boa Vista e a Acre-Pacífico, forem pavimentadas, uma reação em cadeia da exploração madeireira, da colonização agrícola e da conversão em larga escala de florestas em pastagens resultará no aumento da inflamabilidade de vastas áreas de floresta e introduzirá fontes de ignição pelo uso das práticas tradicionais de corte e queima. [...] Não há nenhuma evidência de que uma redução da expansão das fronteiras de ocupação ou a adoção de práticas de uso da terra mais intensivas e menos propensas ao fogo estejam atualmente sendo implementadas em larga escala na Amazônia (grifo meu). A tendência é de repetir a história recente de ocupação da região. A previsão dos futuros cenários do uso do fogo na Amazônia e mudanças das políticas públicas baseadas nesses cenários são tarefas cruciais para a ciência e tomadores de decisão.” Volto a lembrar que estamos aqui falando da década de 1990.
Nesse mesmo capítulo, os autores descrevem um modelo que incorpora uma variedade de dados para prever regimes futuros de fogo na região. Segundo eles, o desenvolvimento desse modelo poderia proporcionar uma ferramenta poderosa para comunicar à sociedade brasileira os impactos de desenvolvimento rural na Amazônia, à época, e ajudar os produtores da região a planejar seus investimentos em prevenção e em controle de fogo.
Passaram-se quase três décadas, e cá estamos nós atônitos diante da floresta em chamas. Creio que falta acrescentar algo às hashtags que circulam por aí: Amazônia em chamas desde... Floresta queimando desde...
E aos leitores ficam as perguntas: por que deixamos de falar disso? E por que voltamos a falar disso?