Perfeita dessincronia
Pesquisadores do ICB patenteiam técnica que bloqueia crises epiléticas sem uso de fármacos e sem prejudicar a atividade normal dos neurônios
A epilepsia é uma desordem neurológica crônica associada à hiperexcitabilidade do tecido encefálico, que predispõe a um estado patológico de excessiva sincronia neural. Os sintomas podem incluir alucinações, alterações de humor e perda de tônus muscular, mas sua expressão mais perigosa é a crise convulsiva. Na maior parte dos casos, o tratamento é baseado no uso farmacológico de inibidores da atividade sináptica ou na remoção cirúrgica da área do cérebro afetada.
“Esse ‘desligamento’ forçado das conexões cerebrais é eficaz para bloquear a atividade exacerbada que caracteriza as convulsões, mas outras funções podem ser prejudicadas. O indivíduo pode ficar sonolento e apresentar falhas de memória e raciocínio”, explica o professor do Departamento de Fisiologia e Biofísica do ICB Márcio Flávio Dutra Moraes, que coordena o Núcleo de Neurociências (NNC) da UFMG.
Segundo o pesquisador, a estimulação do circuito neural por meio de correntes elétricas em alta frequência é uma das técnicas utilizadas atualmente no bloqueio das crises convulsivas, mas a terapia gera o risco de lesões e demanda intervenções cirúrgicas para manutenção.
Em parceria com o Laboratório Interdisciplinar de Neuroengenharia de Neurociências (LINNce), da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), pesquisadores do NCC vêm desenvolvendo uma técnica de estimulação elétrica projetada justamente para maximizar o potencial de interferência na sincronia neural patológica. Batizada de NPS (non-periodic stimulation), a terapia tem fundamento na constatação de que é possível bloquear a propagação da atividade epilética formando ruídos que atrapalham a transmissão exacerbada entre neurônios.
Segundo Márcio Flávio, a lógica reside na compreensão de que várias redes neurais precisam se acoplar funcionalmente, de forma transitória, por meio da sincronização das atividades de estruturas distintas, para que o cérebro execute suas funções cotidianas. “A crise epilética tem origem em perturbações que levam a um recrutamento indevido das redes neurais. Para evitá-la, é necessário interromper esse ciclo”, afirma.
A lógica reside na compreensão de que várias redes neurais precisam se acoplar funcionalmente, de forma transitória, por meio da sincronização das atividades de estruturas distintas, para que o cérebro execute suas funções cotidianas.
Frequência ‘bagunçada’
O sistema NPS funciona em duas etapas, realizadas pelo mesmo dispositivo. A primeira consiste na detecção de algum excesso na comunicação. “Momentos antes da crise, uma rede de neurônios passa a transmitir informações de forma indiscriminada. Um único e breve estímulo elétrico pode ser usado para ‘sondar’ a rede e detectar que ela está começando a operar fora de controle”, explica Márcio Flávio.
Em um segundo momento, o aparelho emite pulsos em uma frequência “bagunçada” capaz de perturbar a comunicação, evitando que os focos de crise se espalhem. “A transferência entre áreas do cérebro requer sincronismo de disparos. Durante a crise epiléptica, esse sincronismo é excessivo. Ao provocar um ruído, que chamamos de estimulação elétrica não estruturada no tempo, o sistema interrompe essas oscilações patológicas e o recrutamento de outras áreas”, detalha Márcio Flávio.
Segundo o professor, em alguns casos, a interferência também pode ser feita por som, luz ou estímulo tátil. “O procedimento é análogo: emito um som que deveria ir para as áreas A, B e C, mas nunca para D. Se ele se propagou para D, há algo errado com o circuito, indicando que devo agir para bloquear uma possível crise epiléptica”, ilustra o professor. O experimento, até então materializado em um protótipo, deverá ser desenvolvido na forma de um dispositivo minúsculo, para ser implantado de forma definitiva no organismo do paciente.
O primeiro teste da nova técnica foi realizado ainda em 2005, em crises agudas de animais, durante o doutorado de Vinícius Rosa Cota (atual coordenador do LINNce), orientado, à época, por Márcio Flávio. A patente foi depositada em 2006. Três anos depois, o primeiro artigo científico foi publicado na revista Epilepsy & Behavior. Desde então, várias publicações demonstraram a eficácia da NPS em diferentes modelos animais de epilepsia. Em julho passado, os pesquisadores receberam a carta-patente da invenção.
De acordo com Márcio Flávio, o próximo passo é fazer a prospecção de parceiros do setor privado interessados na transferência e aplicação da tecnologia. “A NPS é uma contribuição de caráter pouco ortodoxo, para a qual, até então, ninguém estava se atentando. Ela pode solucionar um problema muito sério – que acomete de 1 a 2% da população mundial –, tornando perigosa a realização de atividades simples do dia a dia e afeta significativamente a qualidade de vida”, observa.