A 'p*rra da árvore'
Lamentável perceber o quanto as plantas são desconhecidas. Plantas são tratadas, com frequência, como algo intermediário entre o mineral e os animais. Há quem duvide de que nesses organismos exista vida. Até onde a chamada “cegueira botânica” nos submeterá ao ridículo e, não raro, nos levará a decisões equivocadas, que colocam em risco toda a biosfera? Os vegetais, embora partilhem com os animais tudo o que é essencial para o conceito de vida, vivenciaram um processo evolutivo muito mais longo, estavam neste planeta antes da chegada dos animais que hoje conhecemos. Como os animais existiriam sem a base da cadeia alimentar, essencialmente formada pelos vegetais? Só existimos graças aos vegetais. Simples assim.
Segundo o presidente Jair Bolsonaro, no que se refere à Amazônia, os estrangeiros não estão interessados nem em índios nem na “p*rra da árvore”. Minério é o que lhes interessa. O mesmo minério cuja exploração, mesmo em terras indígenas, parece interessar ao presidente. Respeito os indígenas e o direito que eles têm sobre suas terras e sua cultura, mas pouco entendo deles. Também não entendo de mineração e, embora reconheça sua importância, essa palavra me remete a amplos desastres ambientais. Meu negócio é a “p*rra da árvore”.
Árvores, tal qual peixinhos dourados, zebras e “presidentes”, são seres vivos. Em suas células habitam mitocôndrias e outras organelas, exatamente como em qualquer célula do corpo animal. As semelhanças são tantas que não faria sentido descrevê-las para quem tem a mais vaga noção da origem da vida. No início, a vida em nosso planeta era bastante simples, basicamente restrita a organismos unicelulares, incapazes de produzir o próprio alimento. Era a vida fadada ao fracasso. Difícil imaginar tamanha diversidade, como a que vemos em nosso planeta, sem que a conversão de energia luminosa em energia química tivesse ocorrido. Quis o acaso, ou, como queiram, o criador, que alguns organismos operassem a mágica de converter luz solar em alimento. Bendita fotossíntese! A partir dos primeiros organismos fotossintetizantes e do oxigênio liberado nesse processo, a atmosfera terrestre ganhou oxigênio livre e uma camada de ozônio capaz de barrar a radiação ionizante – nascia assim não apenas o alimento, mas as condições essenciais para que outras formas de vida colonizassem o planeta Terra.
No início, a vida em nosso planeta era bastante simples, basicamente restrita a organismos unicelulares, incapazes de produzir o próprio alimento. Era a vida fadada ao fracasso. Difícil imaginar tamanha diversidade, como a que vemos em nosso planeta, sem que a conversão de energia luminosa em energia química tivesse ocorrido.
Felizmente, o bicho homem demorou bastante a aparecer – do contrário, a vida já estaria extinta. Mas nem é isso o que move essa argumentação. Voltemos, pois, à “p*rra da árvore”. Uma árvore de grande porte pode lançar, por dia, na forma de vapor d’água, cerca de uma tonelada de água na atmosfera. Dá para imaginar o que isso faz com o clima do planeta? Precisa explicar que bilhões de toneladas de água são lançados na atmosfera, diariamente, pelas árvores amazônicas? Essa água flui pelos ares e muda o clima de toda a América do Sul, com forte impacto no clima mundial. Moradores da cidade de São Paulo experimentaram, recentemente, cinzas resultantes de queimadas na Amazônia entregues em meio à água da chuva. Experimentaram também um anoitecer macabro no meio da tarde. Bom seria que os paulistanos, e todos os que vivem ao sul da Amazônia, desfrutassem apenas da umidade que emana dessa imensa cobertura vegetal. Umidade que se converte em chuva e se torna tão essencial à nossa sobrevivência e à nossa economia, ainda fortemente centrada no agronegócio. Isso sem mencionar o estoque de carbono aprisionado na biomassa da floresta. Carbono em quantidade gigantesca está, temporariamente, fora do ciclo, cuidadosamente organizado em moléculas de celulose e guardado nas madeiras amazônicas. A queima indiscriminada desse estoque, ou seja, da floresta, levaria a um abrupto acréscimo de dióxido de carbono na atmosfera, agravando o efeito estufa. Precisaríamos de mais argumentos para defender a floresta em pé, intocada? Não seria mais razoável cobrar dos demais países apoio para preservação da floresta do que simplesmente bradar nossa soberania e usá-la para defender a exploração de recursos minerais sabidamente finitos? Por que razão não apostar nos chamados créditos de carbono e em projetos de sustentabilidade para nos ajudar a preservar a Amazônia, preservando também a possibilidade de continuarmos, todos nós, a habitar este planeta?
O termo chulo empregado para se referir à arvore parece demonstrar o desprezo de nossos governantes pelo meio ambiente, como se o cuidado por ele não significasse a preservação da vida. Tamanho desprezo poderia ser atenuado se lhes ensinassem o quão valorosa é, em termos econômicos mesmo, a nossa biodiversidade. Não seriam necessários argumentos em defesa da vida e da própria biodiversidade, mesmo porque, para aceitá-los, é preciso ter bom senso, coisa rara nesses tempos sombrios. Basta acreditar nos argumentos da área econômica: o minério do subsolo amazônico é finito, já a floresta de pé nos renderá créditos de carbono por gerações e gerações, além de favorecer o uso sustentável de recursos. Proteger nossas florestas pode ser um bom negócio, mesmo para quem se refere a elas com tanto desprezo. E não cabe o argumento simplista de que, após explorarmos o minério sob a floresta removida, poderemos plantá-la novamente. Os solos amazônicos são pobres e, em vez de nova floresta, teremos um novo deserto.
Sem a “p*rra da árvore” não existiria vida tal qual a conhecemos, tampouco peixinhos dourados, zebras ou “presidentes”. Tenho pavor do terraplanismo, mas não creio que ele represente ameaça tão séria à vida no planeta como a ignorância em relação ao papel das florestas na manutenção da vida. Onde está o grande abismo, no fim dos mares desta terra plana, que insiste em não sugar a nau dos ignorantes?