Sofisticado e irreverente
Coletânea organizada por professoras da UFMG mostra a obra multifacetada de Moacyr Scliar, marcada pela tradição judaica, pela memória e pelo humor fino
Em 2017, quando teria feito 80 anos, o gaúcho Moacyr Scliar (1937-2011), médico, professor, autor de romances, contos, ensaios e histórias infantojuvenis, foi tema de seminário realizado na Faculdade de Letras (Fale) da UFMG. A visão de pesquisadores da UFMG e de outras instituições sobre a obra do autor, compartilhada naquele evento, é revelada agora no livro O olhar enigmático de Moacyr Scliar (Quixote+Do), organizado pelas professoras Lyslei Nascimento e Maria Zilda Ferreira Cury.
Como escreve Maria Zilda no prefácio, os ensaios enfocam “o cronista corajoso, o romancista dos imigrantes, o leitor irreverente das tradições literária e bíblica, o memorialista, o humorista fino, o manejador sofisticado da língua, o escritor amoroso e compassivo, de olhar terno na direção dos mais humildes e dos marginalizados”.
De acordo com Lyslei Nascimento, Scliar inscreve-se na literatura brasileira imprimindo traços da medicina e do diálogo com clássicos como Machado de Assis e José de Alencar. “A tradição judaica é outro aporte sofisticado e importante em sua obra. Ele tanto se apropria e reescreve temas bíblicos e religiosos quanto visita aspectos caros à condição judaica, como a imigração e o antissemitismo, que se traduzem em racismo e intolerância religiosa”, explica a professora.
Moacyr Scliar conversa também, segundo Lyslei, com escritores como Franz Kafka, Saul Below e Clarice Lispector. Dialoga com a obra do crítico literário Harold Bloom – que inspirou o romance A mulher que escreveu a Bíblia – e com a do pintor Marc Chagall. “As referências à obra de Chagall são explícitas em vários textos e aparecem, de forma implícita, em personagens e cenários.”
Além dos professores da UFMG, a coletânea conta com a colaboração de pesquisadores da USP, da Unicamp, das universidades federais Fluminense, do Rio Grande do Sul e de Uberlândia. Eles tratam de assuntos diversos como imigrantes e indígenas, utopias políticas e entrelaçamento narrativo.
Kafka e seres lendários
Maria Zilda Cury produziu para o volume o texto Moacyr Scliar, o precursor de Kafka, no qual defende que o autor, em novela feita sob encomenda (Os leopardos de Kafka, Companhia das Letras, 2000), faz uma paródia em que convivem reverência e desconstrução. “Para Jorge Luís Borges, Kafka foi um marco na literatura ocidental e ilumina regressivamente ‘precursores’, que são autores da tradição ligados ao escritor tcheco pelas idiossincrasias de estilo kafkiano”, comenta a professora. “Scliar, escritor latino-americano, judeu como Kafka, enfrenta seu legado com a ficção vista como algo sem controle, construindo sua enunciação a partir do espaço do ‘escritor menor’, na acepção de Deleuze e Guattari, em referência à obra do próprio Kafka.”
Em seu ensaio para o livro Sobre monstros e seres imaginários na obra de Moacyr Scliar, Lyslei Nascimento reencontra no escritor gaúcho a questão dos monstros e monstruosidades na tradição judaica, pela qual ela se interessara durante a pesquisa de doutorado sobre Jorge Luís Borges. Assim como Borges, que reescreveu, no poema O Golem, a lenda do gigante de barro construída pelo rabino Judá Leão, de Praga, Scliar se apropria da história para o livro Cenas da vida minúscula. Ele localiza a criatura, ironicamente um “Pequeno Polegar”, no Brasil.
“Outras criaturas instigantes aparecem na obra de Scliar, como centauros, canibais e estranhos anões que vivem em televisores. Lendários ou imaginários, esses seres chamam a atenção, paradoxalmente, para nossa humanidade, nossa capacidade de coexistência e de amor”, afirma Lyslei. Ao tocar no tema da relação entre criador e criatura, continua a professora, essas citações “reverberam a criação do homem, na Bíblia, e, a partir daí, surge a questão da ética, do ofício do artista e do escritor, assim como reflexões sobre a onipotência e a intolerância que sempre assombraram a humanidade”.
Livro: O olhar enigmático de Moacyr Scliar
Organizadoras: Lyslei Nascimento e Maria Zilda Ferreira Cury
Editora: Quixote+Do, com apoio do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários e do Núcleo de Estudos Judaicos da UFMG - 277 páginas / R$ 35
Lançamento: 31 de outubro, às 19h30, na Academia Mineira de Letras (Rua da Bahia, 1.466)