Perdas, danos e soluções
Problemas auditivos, que também podem estar associados à depressão, ao declínio cognitivo e à demência, são investigados por grupos da UFMG e de universidade francesa
Diagnosticar perda auditiva congênita em bebês ou perda adquirida pelo menos até os três anos de idade é um cuidado extremamente importante que contribui para o pleno desenvolvimento cognitivo da criança. Com os jovens e adultos, esse cuidado não é menos importante, especialmente considerando a estimativa da Organização Mundial de Saúde (OMS), segundo a qual cerca de 1,1 bilhão de pessoas em todo o mundo, quase metade da população de 12 a 35 anos, corre o risco de sofrer perda auditiva em decorrência da exposição prolongada e excessiva a sons muito intensos – incluindo uso de dispositivos de áudio, como fones de ouvido.
A audição ocorre com a chegada das ondas sonoras ao canal auditivo, fazendo vibrar o tímpano, martelo, bigorna e estribo, que, por sua vez, estimula a movimentação do líquido contido na cóclea.
A perda auditiva, até recentemente considerada aspecto natural do envelhecimento (presbiacusia), vem sendo associada à depressão, ao declínio cognitivo e à demência, acarretando custos anuais aos sistemas de saúde de cerca de 100 bilhões de dólares, segundo a OMS. “As pesquisas em saúde pública falharam na identificação dessas associações, e os programas de saúde focaram apenas pacientes com perda auditiva severa, desconsiderando o impacto negativo que a perda, mesmo leve, tem sobre a vida de um adulto”, observa o professor Nicholas Reed, do Centro Coclear de Audição e Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins, em Bloomberg (EUA), e um dos palestrantes do Simpósio franco-brasileiro sobre audição, que será realizado pela Faculdade de Medicina da UFMG e pela Université Clermont Auvergne (França), nos dias 28 e 29 de novembro, no Conservatório UFMG.
Implante coclear
A audição ocorre com a chegada das ondas sonoras ao canal auditivo, fazendo vibrar o tímpano, martelo, bigorna e estribo, que, por sua vez, estimula a movimentação do líquido contido na cóclea. Nesse “caracol”, cujas curvaturas são formadas por pontos sensíveis aos sons graves e agudos, também se encontram as células ciliadas que, com base no potencial elétrico gerado pela entrada de íons pelos canais abertos de sódio e potássio, ativam os nervos auditivos. Esses nervos conectam-se aos lobos temporais do cérebro, onde, finalmente, se dá a codificação dos sons.
“Quando a orelha só consegue perceber sons acima de 25 decibéis nos dois ouvidos, fica caracterizada uma perda auditiva que, na maioria dos casos, é resultado da falta ou dano das células ciliadas. Quando a perda é leve a moderada, o aparelho auditivo pode ajudar. Em casos de perda severa a profunda bilateral, a indicação é o implante coclear, conhecido como ouvido biônico. E, em todos os casos, o acompanhamento com fonoaudiólogo é fundamental para que o paciente adquira ou recupere o código linguístico”, explica o professor Celso Becker, da Faculdade de Medicina da UFMG, integrante do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas, único da rede pública em Belo Horizonte autorizado a realizar o implante.
“Comparados aos músculos, os nervos auditivos também devem ser estimulados, principalmente até os três anos de idade, fase de maior plasticidade cerebral (capacidade de reorganização do cérebro). E, mesmo para quem já adquiriu o código linguístico, os estímulos são fundamentais para manter os dois nervos cocleares funcionando normalmente”, alerta Becker.
O ouvido biônico, com custo médio de R$ 40 mil para o Sistema Único de Saúde (SUS), tem até 24 filamentos acoplados a minúsculas placas de metal, que emitem choques nos nervos auditivos, substituindo a função da cóclea. A cirurgia dura cerca de três horas, e o aparelho é ativado após um mês.
Para Adriana Helena de Souza Martins, 47 anos, submetida ao implante há cinco anos pela equipe do HC/UFMG, o ouvido biônico significou a recuperação da qualidade de vida no trabalho e no convívio social. Após perder a audição, aos 17 anos, em decorrência de uma pneumonia, Adriana chegou a usar aparelho auditivo, sem sucesso. Após o implante, recebeu acompanhamento psicológico e, para recuperar a linguagem, assistência fonoaudiológica por três anos. Agora, até brinca com a situação: “Às vezes, penso que estou ouvindo até demais. Quando acho que um lugar está muito barulhento, ou não quero ouvir pessoas inconvenientes, tiro o aparelho e fico tranquila”.
Riscos somatizados
Em crianças, as perdas auditivas podem ocorrer na gestação, na hora do parto ou nos primeiros anos de vida, causadas por doenças como rubéola e sífilis, transmitidas durante a gestação, ou por falta de oxigênio na hora do parto, baixo peso e icterícia neonatal. O uso de antibióticos ototóxicos e doenças como meningites, sarampo, caxumba e infecções crônicas no ouvido também afetam jovens e adultos, segundo Celso Becker. Por isso, ele defende o pré-natal e o uso de vacinas em todas as faixas etárias como importantes instrumentos de prevenção.
Traumatismo craniano e exposição prolongada a sons muito altos são causas do aumento assustador de perda auditiva entre jovens e adultos. De acordo com a OMS, o Brasil ocupará a quinta posição mundial em população idosa nos próximos 30 anos, e a perda auditiva, que também ocorre naturalmente a partir da meia idade, soma-se aos demais fatores de risco para declínio cognitivo e demência.
“Podemos estar diante de uma epidemia de demência. Os dez países mais populosos do mundo, exceto Estados Unidos e Japão, são nações em desenvolvimento. Neles, os baixos índices socioeconômicos, de escolaridade e o tipo de ocupação estão cada vez mais associados ao declínio cognitivo e à demência”, analisa o médico neurologista Paulo Caramelli, professor da Faculdade de Medicina da UFMG.
Segundo Caramelli, a OMS identificou 58% de indivíduos com demência vivendo em países de médio e baixo poder aquisitivo, número que pode subir para 68% nos próximos 15 anos. “Os estímulos sensoriais, especialmente visão e audição, são essenciais para a saúde cerebral. A prevenção é a melhor arma para mudar esse cenário, uma vez que estudos indicam que mais da metade dos fatores de risco em populações latino-americanas, por exemplo, são modificáveis, como tabagismo, sedentarismo, pressão arterial e diabetes”, acrescenta o professor.
Inovação diagnóstica
Novos testes, denominados objetivos de audição, que possibilitam identificar, de forma relativamente rápida, as estruturas lesadas – células sensoriais ou neurônios – e os mecanismos defeituosos (vibrações, neurotransmissão ou produção de energia necessária) são defendidos pelo professor Paul Avan, do Laboratório de Biofísica Neurosssensorial da Université Clermont Auvergne, da França, que, há mais de quatro anos, coordena o projeto Perda auditiva neurossensorial progressiva na infância, monitoramento, diagnóstico e desenvolvimento tecnológico, em parceria com o Departamento de Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da UFMG.
Estudos revelam que cerca de um quarto das crianças com perda auditiva na primeira infância não apresentou alteração no teste da orelhinha.
“Alguns modelos aplicados em animais indicam que outros testes devem ser desenvolvidos, já que certas alterações auditivas permanecem indetectáveis. Os testes para identificar as perdas frequentes em adultos – presbiacusia e exposição sonora excessiva – limitavam-se à avaliação dos limiares auditivos e à compreensão da palavra. Mas novas formas de tratamento surgiram, até mesmo com a substituição dos genes defeituosos identificados, e até a regulagem dos aparelhos auditivos tornou-se mais eficaz após se conhecer a causa exata da perda auditiva”, avalia Paul Avan.
Triagem auditiva
“No Brasil, a cobertura para triagem neonatal, também conhecida como teste da orelhinha, beneficia apenas 50% da população. Um índice baixo, que revela falta de prioridade na gestão dos serviços, mais do que falta de recursos”, afirma a professora Sirley Alves da Silva Carvalho, do Departamento de Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da UFMG e coordenadora da parceria com a Universidade Clermont Auvergne.
Estudos revelam que cerca de um quarto das crianças com perda auditiva na primeira infância não apresentou alteração no teste da orelhinha. “Portanto, a triagem auditiva após o período neonatal, antes da fase de alfabetização, é uma preocupação em todo o mundo, motivo que nos levou a priorizar o desenvolvimento de pesquisas e testes auditivos para diagnóstico precoce nessa fase”, relata Sirley Carvalho.
Um dos frutos desse trabalho, que gerou duas dissertações de mestrado e uma tese de doutorado, é o Instrumento de Triagem Auditiva Infantil (Itai), que será utilizado pelas escolas de educação infantil de Belo Horizonte e Betim, a partir de 2020, como uma das 12 ações do Programa de Saúde na Escola (PSE).
Referendado pelo Conselho Regional de Fonoaudiologia e pelas secretarias de Saúde e de Educação de Minas Gerais, o Itai consiste em um questionário, disponível em cartilha, para ser respondido pelo familiar ou responsável mais próximo da criança, sob orientação de um profissional da educação ou saúde, no próprio ambiente escolar.
Para aplicação do questionário, profissionais de 87 municípios mineiros já foram treinados em videoconferências. As perguntas são divididas de acordo com três faixas etárias (12 a 18 meses, 19 a 36 meses e 37 a 48 meses) e levam em conta a história pregressa da criança, para identificar as que fizeram o teste da orelhinha e, entre elas, as que receberam intervenção em caso de resultado positivo para perda auditiva.
O questionário considera também o marco de desenvolvimento da audição e da linguagem, “com perguntas muito simples, com sensibilidade de 100% na identificação de perdas auditivas neurossensoriais, irreversíveis”, segundo a fonoaudióloga Lorena Bicalho, bolsista da Fapemig e pesquisadora do projeto de cooperação Capes/Cofecub, que validou o Itai em seu doutorado, defendido em outubro de 2019, no Programa de Pós-graduação em Saúde da Criança, da Faculdade de Medicina. As respostas binárias (sim ou não) referem-se a perguntas do tipo: “Você acha que a criança escuta bem?”, “Ela repete novas palavras?’, “A criança reage ao som de música com movimentos corporais?”.
Lorena Bicalho explica que, no caso de pelo menos uma resposta “não”, a criança será encaminhada a atendimento primário, nos centros de saúde. Caso necessário, ela será avaliada por um otorrinolaringologista e fara exames auditivos, para confirmação da existência da alteração.
A segunda edição do Simpósio Franco-brasileiro sobre audição, que reunirá especialistas, profissionais e estudantes das áreas de saúde, engenharia e educação, é uma das ações decorrentes da parceria entre UFMG e a Université Clermont Auvergne. Em 2018, reuniu novidades sobre a triagem auditiva na infância e, neste ano, tem como tema Genética, cognição e tecnologia. A programação está disponível no site do evento.