Educação em estado de tensão
Imagine 30 milhões de palavras em três anos. Dez milhões por ano. Esse é o número de palavras que uma criança rica escuta a mais que uma criança pobre, segundo um estudo de Hart e Risley feito para os Estados Unidos – mas que vale também para nós. As diferenças entre crianças ricas e pobres já são gigantescas, portanto, antes do 1º ano do ensino fundamental, e, ao longo do percurso de aprendizagem, o abismo só aumenta. Deveríamos estar criando um projeto de país que aplicasse mais recursos e políticas na primeira infância, sem esquecer os outros ciclos de ensino e aprendizagem que também precisam de atenção prioritária. No caso da educação, mais do que nunca, como já dizia o antropólogo Luís da Câmara Cascudo (1898-1996), com sua irreverência crítica, “o Brasil não tem problemas, só soluções adiadas”.
Há um considerável número de palavras usadas no meio corporativo para traduzir aquilo que todo cidadão de bem e toda empresa lícita deveria praticar sem esforço: a honestidade. Os termos não variam muito e seguem um roteiro ditado pelo mundo da moda. Compliance é a bola da vez. Num bom português, isso significa andar na linha, ter compromisso com a integridade, satisfazer o que é determinado legalmente. Instituições e pessoas que cumprem seu dever de forma justa e honesta passam a ser tomadas, nos dias atuais, como exemplos de compliance. Num tempo em que a pessoa é considerada culpada até que prove sua inocência, parece mesmo ter sido ontem que César afirmou que sobre sua esposa Pompéia não deveria recair nenhuma suspeita. Não há aí nenhum julgamento moral, senão o desejo de que aquele que se afirma justo de fato o seja. O dito popular é direto e reto: à mulher de César não basta ser honesta, ela deve parecer honesta.
A honestidade não é coisa fácil. Exige integridade, virtude pouco comum nos tempos atuais. Promessa tem relação com juramento, que não necessariamente é um ato religioso, mas uma certeza de que a palavra dada basta. Lembra o antigo fio de bigode trocado entre homens íntegros quando da realização de um acordo. Não era preciso papel assinado, com firma reconhecida em cartório. A soma da promessa com a credibilidade gera uma espécie de convicção de que algo será realizado. Essa atitude, comum em época de campanha eleitoral, leva o eleitor a contar com a certeza (ou ilusão) de que algo desejado será cumprido. E, assim, são conquistados apoios e votos.
O tempo é o melhor auditor para se afirmar compliance. Desde os tempos mais remotos, nossas instituições costumam não primar pelo princípio da democracia. Nasceram e cresceram imersas em um sistema autocrático, senão despótico. Com a verba pública, construíram seus sistemas de sucessão e de gestão conforme a conveniência. Nesse contexto, a cultura dita ideal se vulgariza à medida que se agiganta o modelo profissionalizante responsável pelo enorme crescimento do mercado educacional que paga mal os professores e entrega profissionais com pouca ou nenhuma formação humanística à sociedade. Assim, a educação de ponta não goza do mesmo prestígio da formação essencialmente instrumental e massificadora.
Sem planejamento de uma estrutura educacional consistente, a educação só se confirma como transmissão e assimilação de técnicas de fazer algo, destinada à conquista material do indivíduo (arrumar emprego melhor para comprar mais coisas e coisas melhores), atrelada à produtividade de um saber adquirido com base em modelos padronizados e conservadores. Com isso, é pouco estimulada a educação como formação crítica. Logo, impera a tendência formal e quantitativa, com hipervalorização de números, diplomas, certificados, titulações, currículos, sem questionamentos amplos sobre os direcionamentos desse modelo. Cresce a idolatria por resultados, metas, estratégias, normatizações e índices de desempenho e produtividade.
Convém salientar que a escola, para impulsionar a formação plena, precisa se transformar em um espaço cooperativo no qual se intercalem a formação intelectual (consciência crítica), científica e artística de protagonistas sociais comprometidos eticamente com os desafios de construir outros mundos possíveis, fundados na partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano. Nesse modelo, a elite cultural será aquela que tiver a capacidade de selecionar, interpretar e criar informação. Resultados positivos ou negativos dependerão de como as pessoas “metabolizarão” os conteúdos encontrados. Entretanto, o desenvolvimento intelectual e sensível da população encontra um terrível obstáculo no moralismo retrógrado que afeta a agenda de costumes no Brasil.
Queremos viver em grupo, mas, ao mesmo tempo, pretendemos ser elementos de destaque no grupo. Há sempre mais conforto nas decisões compartilhadas, no entanto desejamos que nossa opinião prevaleça.
Queremos viver em grupo, mas, ao mesmo tempo, pretendemos ser elementos de destaque no grupo. Há sempre mais conforto nas decisões compartilhadas, no entanto desejamos que nossa opinião prevaleça. Tendemos a driblar os obstáculos, e não a enfrentá-los, o que raramente representa uma qualidade. Evitamos confrontos e preferimos formas esquivas. Não temos clareza e discernimento do que é público e do que é privado. Não entendemos como nossa a coisa pública e somos, assim, privados de nossos direitos. O sociólogo Chico de Oliveira (1933-2019) chegou a afirmar que o jeitinho brasileiro nasceu, justamente, “das contradições entre uma ordem liberal formal e uma realidade escravista”; teria sido um expediente para entrar na nova ordem capitalista sem precisar romper com a antiga ordem escravocrata, sem mexer na estrutura social do país. Nossa tensão educacional ocorre porque nela se expressa autoritariamente um velho hábito da política brasileira, conforme destaca o personagem machadiano Conselheiro Aires, em Esaú e Jacó (1904): “também se muda de roupa sem trocar de pele”.