Reforma tributária: é preciso ir além da simplificação
Desde a publicação do trabalho de Piketty, em 2014, que mostrou a elevada concentração de riqueza em diversos países, o crescimento da desigualdade ganhou espaço no debate internacional. Recentemente, a Organização das Nações Unidas (ONU) informou que dois terços da população mundial vivem em países em que a desigualdade de renda tem aumentado. A Oxfam (2020) indicou que o grupo do 1% mais rico detinha, em 2019, riqueza equivalente ao dobro da riqueza de 6,9 bilhões de pessoas. O Brasil, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2019), ocupa o segundo lugar na lista de países com maior concentração de renda. Aqui, o 1% mais rico detém 28,3% da renda total.
Desigualdade de renda e sistema tributário estão estreitamente conectados. Os índices de Gini da América Latina e da União Europeia (UE) medidos exclusivamente sobre a renda originada no mercado, isto é, salários, juros, lucros etc., são respectivamente 0,51 e 0,47. Quando calculados após a incidência da tributação e das transferências, os índices caem respectivamente para 0,48 e 0,30. Ou seja, o sistema tributário dos países membros da UE é o grande responsável pela baixa desigualdade de renda da região.
O atual sistema tributário brasileiro aprofunda a desigualdade de renda por conta da alta incidência de tributos que recai sobre o consumo. Ao mesmo tempo, é reduzida a tributação sobre a renda e o patrimônio (que afetaria as classes mais ricas)
O atual sistema tributário brasileiro aprofunda a desigualdade de renda por conta da alta incidência de tributos que recai sobre o consumo. Ao mesmo tempo, é reduzida a tributação sobre a renda e o patrimônio (que afetaria as classes mais ricas). Enquanto no Brasil não há tributação de dividendos da pessoa física, entre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) a média dessa tributação é de 24,1% da carga tributária total. Por outro lado, a participação da tributação de bens e serviços aproxima-se de 50% da carga tributária no Brasil – 32% em média na OCDE. No Brasil, as classes sociais com menor poder aquisitivo são penalizadas.
Existe, portanto, amplo espaço de atuação para as políticas públicas que visam enfrentar o problema da desigualdade. Esse é o caso da política tributária, e o objetivo da reforma deveria ser o de cumprir o princípio constitucional da justiça tributária. Algumas medidas fundamentais para a correção de distorções seriam a redução da tributação sobre o consumo e a produção e a taxação de dividendos, grandes fortunas e grandes heranças. Uma das principais fontes de renda dos muito ricos, a distribuição de dividendos às pessoas físicas é, desde 1996, isenta de tributação no Brasil. Também são exemplos de medidas que poderiam ser adotadas a redução das desonerações e o combate à sonegação.
As propostas de reforma tributária em debate no Congresso (PEC 45/2019, na Câmara, e PEC 110/2019, no Senado) não incorporam essas medidas e tampouco enfrentam o problema da falta de justiça tributária. Ambas concentram-se quase exclusivamente na simplificação. Em suma, a PEC 45 propõe a substituição dos cinco principais tributos sobre o consumo (ISS, ICMS, IPI, PIS e Cofins) por um imposto sobre valor adicionado com legislação nacionalmente unificada, de alíquota única entre os bens e serviços e alíquota total estimada em 26,9% (Orair e Gobetti, 2019). Esse tributo será chamado de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Está nos planos, ainda, a criação de um imposto seletivo (IS) a incidir sobre bens considerados individual e socialmente danosos, como cigarros e bebidas alcoólicas.
Os principais objetivos das PECs são a ampliação da eficiência do sistema tributário, por meio da redução de custos das empresas com gestão das obrigações tributárias, e extinção de impostos em cascata. Ou seja, a expectativa é que a reforma não alterará a carga tributária global da economia, mas promoverá um sistema mais eficiente. As propostas também preveem a eliminação da guerra fiscal entre os estados, uma vez que o IBS será recolhido exclusivamente no estado de destino, isto é, onde o bem ou serviço é consumido. Desse modo, não será possível aos estados oferecer isenções de ICMS para atrair atividades produtivas. Essas políticas provocaram a erosão da base de tributação e, consequentemente, o comprometimento das contas públicas de muitos governos estaduais. Para diminuir a resistência dos estados que inicialmente perderiam receita com essa mudança, está previsto um prazo de transição entre o antigo e o novo sistema.
Todas as mudanças sugeridas nas reformas são relevantes e bem-vindas. Ninguém em sã consciência é contra a simplificação tributária e os ganhos de eficiência. O péssimo desempenho do Brasil no Relatório Doing Business 2020 deixa claro o quanto estamos atrasados e precisamos avançar.
Não obstante, as propostas até então apresentadas são demasiadamente tímidas e não atacam o problema fundamental: o sistema tributário é essencialmente injusto. Ademais, existem algumas preocupações em relação ao atual desenho das reformas. A primeira diz respeito à falta de clareza sobre como prevenir que a alíquota única do IBS implique aumento de tributação para as famílias de baixa renda. Prevê-se a devolução parcial de impostos a essas famílias, porém sem estabelecer o mecanismo para realizar essa operação. A segunda e talvez mais importante preocupação é a possibilidade de desvinculação orçamentária, sobretudo da seguridade social, que a eliminação dos atuais impostos pode embutir. Esse risco é ampliado por conta das medidas já tomadas e das intenções declaradas do atual governo de realizar uma desvinculação total do orçamento da União.
Em resumo, ambas as propostas incorporam medidas paliativas, mas não atacam o problema da elevada regressividade do sistema tributário brasileiro. Tornar o sistema mais progressivo reduz a desigualdade e amplia a eficiência econômica. A reforma tributária é uma boa oportunidade para reduzir a distância entre o Brasil que somos e o que sonhamos ser. Mas, para isso, é preciso ir além da simplificação.
Fabrício Missio, professor do Departamento de Economia da Face/UFMG
Diogo Santos, doutorando do Programa de Pós-graduação em Economia do Cedeplar/UFMG