Edifício de memória e arte

Derradeiro morador

Autor de tese na EBA transformou casa da família em residência artística para discutir relações entre acontecimento, memória, narrativa e conceitos como o de autoficção

Alexandre Sequeira: saga do edifício e da família narrada em colaboração com outros artistas
Alexandre Sequeira: saga do edifício e da família narrada em colaboração com outros artistas André Mardock

Resiste em Belém do Pará, em meio a espigões de concreto e vidro, uma casa construída na década de 1930, que está entre as primeiras edificações na cidade com traços modernistas. O prédio de dois pavimentos tem um só morador, neto do terceiro proprietário. Ele está cercado de imagens, objetos, memórias e percebe que sua casa vive o limite entre passado, presente e futuro. 

Interessado em preservar a casa, ainda que “encantada”, ou seja, no plano das ideias, como ele diz, o arquiteto e artista Alexandre Romariz Sequeira decidiu narrar a saga do edifício e da família, com a colaboração de outros artistas. Em contato temporário com aposentos, documentos, retratos e com o próprio Alexandre, fotógrafos, poetas e performers tornaram-se coautores da história, que constitui a tese Residência São Jerônimo: entre o acontecimento, a memória e a narrativa, defendida neste ano, na Escola de Belas Artes. A pesquisa foi realizada no âmbito do Doutorado Interinstitucional que une a UFMG e a Universidade Federal do Pará (UFPA).

Objetos que materializam a memória dos moradores que passaram pela casa
Objetos materializam a memória dos moradores que passaram pela casa Alexandre Sequeira

Alexandre Sequeira transformou a casa antiga numa residência artística, que envolveu 11 “moradores” em períodos diferentes – o projeto contou também com doadores de obras e autores de registros em áudio e vídeo. “Minha relação com a história da casa tem uma forte carga pessoal, minha leitura é presa a questões de ordem familiar, e também por isso eu precisava de outras pessoas”, diz o autor do trabalho, que é professor do Instituto de Ciências da Arte da UFPA. “Trabalhei, sobretudo, com nossa relação com a imagem e a capacidade que todos temos de reescrever a história de forma ficcional.”

Um dos conceitos mais presentes na proposta de discussão da tese é o de autoficção, criado pelo francês Serge Doubrovsky ao apresentar a obra Fills, sua autobiografia. Segundo Sequeira, uma história é reescrita pelo próprio ato de narrar, e isso não é exclusividade dos artistas. “A ideia de autoficção ainda enfrenta desconfiança, é vista por alguns como desvio normativo. Mas não se trata de mentira, uma vez que a interpretação é da ordem da linguagem. Basta pensar que nos apegamos mais à qualidade que aos detalhes das lembranças, e falar por metáforas, por volteios, cerca melhor o aspecto da qualidade”, explica o pesquisador, que cursou também o mestrado na EBA.

Arte e vida

Alexandre Sequeira esclarece que uma residência artística é uma experiência organizacional que propicia espaço de criação pautado por relações de troca e partilha de ideias. “Partindo de suas práticas artísticas, os envolvidos acessam a complexidade, a diversidade, o significado e o valor das relações entre arte e vida”, ele comenta, acrescentando que a ideia de ocupação da casa surgiu em consonância com propostas que ele vem elaborando nos últimos 15 anos. “Tenho me deslocado da condição de autor para a de propositor de mecanismos de aproximação e interação com o outro. Junto-me a pessoas ou grupos aos quais atribuo parceria e coautoria de projetos concebidos por mim. A coautoria é fruto do convívio e da negociação entre pontos de vista diferentes.”

Os artistas residentes, especialistas em diferentes linguagens, criaram obras em que, como diz Sequeira, “apropriaram-se de imagens, corrompendo-as”. O paraense Marcilio Costa escreveu poemas nas paredes, usando-as como bloco de anotações. J.P. Acaccio, videomaker  de São Paulo, deixou mensagens pela casa. Nathalia Queiroz, de Pernambuco, criou performance que traduziu a relação de seu corpo com o espaço, explorando aspectos como luminosidade e temperatura.
As conversas de Alexandre Sequeira com todos os artistas foram gravadas, e daí ele montou a narrativa poética multiautoral, permeada com fotografias, que aparece no quarto capítulo da tese. As três primeiras partes contêm reflexões de teor acadêmico, que remetem a conceitos como ruína e rastro, à ideia da imagem que cria mundos, de Gilles Deleuze, e à do arquivo como elemento vivo, em constante transformação, de Jacques Derrida.

Como derradeiro morador, opto por incorporar outros sons que chegam de fora da casa, e não apenas as vozes que me cobram mais do que posso sonhar. Chega de me manter retido em mim. Não há promessas de futuro quando só se dá ouvidos aos sussurros que ecoam pelos cômodos, já que ali só mora o passado. Busco, assim, ouvir e ser ouvido numa humanidade que hoje fala por meio de muitas vozes, reforjando essa polifonia harmoniosamente, sem a pretensão de alcançar uma uniformidade, mas uma ação recíproca de vários motivos diferentes.
 (Trecho da tese)

De acordo com o pesquisador, a tese “se oferece como um roteiro e converte a experiência em fala sensível. A história vai se constituindo com a própria obra”. Ele usa fragmentos das falas dos artistas, todas em primeira pessoa, para a narrativa da saga, que tem estrutura próxima à do romance. “Uma lógica que rege o trabalho é a de que imagem pede palavra, e vice-versa, o que gera a reescritura permanente”, explica Sequeira. O método de produção da escrita possibilitou, ele acrescenta, “diluir fronteiras identitárias, subverter o tempo e lidar com a memória viva, que não imobiliza, mas projeta desejo para o futuro. Se não for assim, ela vira peso morto.”


Fato ou arte?

Visitante lê poema do artista paraense Marcilio Costa escrito na parede
Visitante lê poema do artista paraense Marcilio Costa escrito na parede Alexandre Sequeira

Alexandre Sequeira viaja dentro e fora do Brasil para contar histórias, em eventos como o TED Talks, e se define como um artista de plataformas de encontros e trocas simbólicas, que lança mão da intersemiose e realiza a chamada “obra-fala”. Esse formato é certamente um dos destinos de Residência São Jerônimo. Segundo o pesquisador, essa prática gera inquietações que motivaram a pesquisa. “Quando me apresento, as pessoas perguntam se estão diante do relato de um acontecimento ou de uma narrativa artística. Meu trabalho com a casa aponta para o cerne de questões que eu abordo. A matéria com que lido é plástica, fluida. Então, que matéria tão plástica é essa? É claro que é a linguagem!”
Entre as conclusões possíveis de sua investigação, Sequeira destaca a possibilidade, criada pelo convívio com os outros artistas, de “borrar as linhas fronteiriças entre o que é pessoal, o que é do outro e o que é da humanidade”.  Ele esclarece que, “numa lógica que, de forma ambígua, transita entre o que é o que não é, identidades e acontecimentos se confundiram e subverteram o sentido linear do tempo para que se pudesse tratar da autoficção e pensar sobre o papel das imagens como indutoras da aproximação entre o ato de viver e o ato de criar”. Ainda para o pesquisador, ele foi conduzido, com seus parceiros, “pelo prazer de reconfigurar a própria vida com base em uma bricolagem de referências originadas no que é concreto e no que é da ordem do intangível, do reino das ideias”.

Alexandre Sequeira avalia que seu trabalho sugere questões que precisam ser aprofundadas, como a da diluição das fronteiras entre arte e vida, a dos novos espaços para produção de arte e a da desmitificação da condição de autor, “na medida em que práticas artísticas surgem, de um modo ou de outro, do encontro e da troca”. E continuará resistindo, mais que nunca, a antiga casa de Belém do Pará.

Tese: Residência São Jerônimo: entre o acontecimento, a memória e a narrativa
Autor: Alexandre Romariz Sequeira
Orientador: Carlos Henrique Rezende Falci
Programa: Pós-graduação em Artes da Escola de Belas Artes da UFMG
Defesa: 18 de fevereiro de 2020

Itamar Rigueira Jr