Boletim
Tijolo por tijolo
Paulo Freire, o pensador do diálogo, da autonomia e da esperança
A trilogia Pedagogia do oprimido, Pedagogia da esperança e Pedagogia da autonomia e todo o pensamento de Paulo Freire foram forjados no Brasil e na América Latina da década de 1960. Contudo, o conjunto da sua obra é marcado por uma vasta produção teórica que influenciou pensadores de várias áreas, em lugares tão diversos como o próprio Brasil, o Canadá, a Europa e a África. Sua teoria e sua práxis cruzaram as fronteiras das disciplinas e dos espaços geográficos e criaram raízes em solos que transcendem o da Educação, como a Medicina, as Ciências Sociais, a Filosofia e a Psicologia.
A heterogeneidade e a complexidade da obra de Freire não impossibilitaram a identificação de alguns temas centrais do seu pensamento, cuja reformulação dialética sempre se deu com base no binômio educação e política, constituindo síntese original entre o existencialismo, a fenomenologia e a dialética.
Pedagogia do oprimido foi escrito no fim dos anos de 1960, no período em que Freire esteve exilado em Santiago do Chile. Nessa obra, sem abandonar o humanismo característico dos seus primeiros escritos, Freire incorporará a perspectiva dialética em sua reflexão sobre a hominização, a educação, a opressão e a transformação.
Nas análises que propõe sobre a condição de opressão, ele destaca que a principal problemática do oprimido reside no fato de ele hospedar valores, ideais e interesses, incluindo necessidades dos opressores em sua consciência, o que impediria a percepção de uma condição de subalternidade e opressão. Essa experiência seria naturalizada e vivida como algo que se refere a uma espécie de essência universal, e a possibilidade de uma análise crítica seria temida, consistindo, assim, no que Freire chamou de medo da liberdade. Medo que se explicitará, por um lado, como afirmação do status quo e, por outro, como prescrição de um futuro predeterminado. Esse processo, segundo Freire, explicaria a manutenção e a naturalização das relações de opressão. Freire dirá que isso não significa que os oprimidos não saibam que são oprimidos – o problema é que estão demasiadamente imersos na situação de opressão, e reconhecerem-se como oprimidos não os levaria à superação da opressão, mas a uma aderência ao opressor.
Freire baseia-se na Dialética do senhor e do escravo, de Hegel, que descreve o processo pelo qual a luta das consciências pelo mútuo reconhecimento leva à dominação de uma pessoa por outra. Para Freire, um dos elementos básicos na mediação opressor- -oprimido é a prescrição, pois impõe a opção de uma consciência a outra e faz o comportamento dos oprimidos ser prescrito, levando-os a temer a liberdade. Essa situação exigiria que os oprimidos, ao expulsarem os valores, as crenças e as prescrições do opressor de sua consciência, preenchessem o vazio com a sua autonomia. Essa compreensão dialética rompe radicalmente com perspectivas dicotômicas e essencialistas das situações de opressão. Freire adotará a dialética e criticará o idealismo presente na interpretação hegeliana do processo histórico e da formação da consciência, reforçando a importância das bases materiais e históricas para a formação da consciência.
Mas como sair dessa condição? Para Freire, é a conscientização da situação de opressão por parte do oprimido que marca o princípio dessa emancipação, e esse processo só poderá ocorrer por meio de uma pedagogia com o oprimido e não para o oprimido. Freire faz uma crítica aos modelos de educação que consideram que os educandos são recipientes vazios que deverão ser “enchidos” pelos conteúdos comunicados, narrações dos educadores, num processo de arquivamento, sem transformação e reflexão crítica. Nessa educação bancária, o “saber” é uma doação daqueles que se julgam sábios.
O que Freire propõe é o diálogo, a interação e a participação para a superação da condição da opressão. Ao longo de sua obra, essa posição ganha interpretações mais contundentes sobre as desigualdades sociais que marcam a sociedade brasileira, e a análise do conflito e do antagonismo vai ganhando centralidade na compreensão da condição de opressão.
Sabemos que a convocação da participação como lugar por excelência da emancipação ganha, muitas vezes, um sentido demagógico por meio da recorrente utilização dessa noção para, no fundo, legitimar as ações que seguem sendo prescritivas dos modos de viver e pensar. Freire critica essas posições do pseudodiálogo e propõe a ação dialógica. A compreensão da ação dialógica pelo autor sofrerá modificações ao longo da sua obra: de uma visão mais idealista e romântica, Freire passará a considerar as lutas sociais como caminho para a transformação social, o que é, em última instância, a luta pela emancipação. Aos poucos, essa emancipação deixará de ser um ponto fixo de chegada para se transformar em processo permanente de libertação.
Esse desvelamento do mundo da opressão refere-se ao processo de conscientização, e o processo permanente de libertação refere-se à dimensão da utopia e da esperança no pensamento de Paulo Freire. Para ele, a consciência é a capacidade dos seres humanos de se distanciarem das coisas para fazê-las presentes. É essa condição de tomada de consciência como ser-no-mundo e ser-com-o-mundo que define o processo de humanização – a humanização é o pressuposto para a emancipação e a sua utopia. Um aspecto relevante é que esse processo, para Freire, não pode ser vivido de forma isolada, mas em coletividade, em interação, reforçando a importância do contexto social e dos aspectos materiais para analisar as desigualdades e realizar a sua transformação.
Que suas ideias não sejam esquecidas e, mais que isso, que sejam debatidas, analisadas e postas em prática, em um exercício contínuo de liberdade. Obrigada, Paulo Freire!
Claudia Mayorga - professora do Departamento de Psicologia da Fafich e pró-reitora de Extensão da UFMG
Parte deste texto foi retirada do artigo Revisitando a pedagogia do oprimido: contribuições à psicologia social comunitária, publicado pela autora em 2007