Contrariando os mentirosos, mentindo-lhes
Livro resgata meandros da ‘Sociedade Petalógica’, que no século 19 espalhava notícias falsas para criar atmosfera de ceticismo
Durante o Brasil Império, o termo ‘peta’ era muito usado para se referir à mancha causada pela podridão em uma fruta – assim como à mentira, lorota, engano ou algo equivalente. Essa segunda acepção inspirou o nome da Sociedade Petalógica, grupo que, na segunda metade do século 19, reunia-se informalmente na livraria de Francisco de Paula Brito, no bairro Catete, no Rio de Janeiro.
Composto de integrantes da elite intelectual e política da época, incluindo o Visconde do Rio Branco e o então jovem escritor Machado de Assis, mas também por indivíduos anônimos e populares, o grupo, em suas sessões, criava diretrizes para semear um debate público cético e jocoso, com vistas a “contrariar os mentirosos, mentindo-lhes” – como apregoava o mote da agremiação.
O legado de Paula Brito, considerado o primeiro editor brasileiro, além de mentor do ambiente cômico e literário da Sociedade Petalógica, é retratado no livro Corpo sem cabeça: o tipógrafo-editor e a Petalógica, de autoria do professor Bruno Martins, do Departamento de Comunicação Social da Fafich. A obra foi lançada neste mês pela Editora UFMG.
Porque discute relações entre comunicação, literatura e história, o livro interessa, segundo o autor, àqueles que integram e se aproximam dessas comunidades científicas e das humanidades. “É atrativo também ao público leitor geral, já que consiste em um ensaio de historiografia literária. Ao explicitar o paradoxo, ao enunciar a ‘mentira verdadeira’, ao buscar a verdade da mentira, como faz a ficção, a Sociedade Petalógica colocava em relevo a própria linguagem e sua capacidade de representação”, observa Bruno Martins.
O livro é desdobramento da pesquisa de doutorado em Estudos Literários na PUC-Rio, concluído em 2013. No Rio de Janeiro, Bruno Martins recorreu ao acervo do Real Gabinete Português de Leitura, em busca de periódicos e documentos antigos. Entre os acervos por ele acessados eletronicamente estão a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional e a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da USP.
Sua obra reúne transcrições de reuniões da Sociedade Petalógica e apresenta acervo iconográfico de impressos e imagens da época. “Corpo sem cabeça aborda a interseção entre o sistema oral, então fortemente consolidado, e as possibilidades de uma nova dinâmica gráfica que, alavancada pelo avanço da tipografia, demarcam o lugar e a particularidade do literário na instalação e no desenvolvimento da imprensa no Brasil”, descreve o professor do Departamento de Comunicação.
Editor do jovem Machado
“Machado de Assis afirmou que Francisco de Paula Brito fora ‘o primeiro editor digno do nome que houve entre nós’”, afirma o autor do livro. Na avaliação de Martins, as práticas do editor pioneiro “viabilizaram o que chamamos hoje de literatura brasileira”. “Foi Paula Brito quem pela primeira vez publicou em volume os textos do então aspirante a escritor Machado de Assis. Em meu livro, observo as condições de emergência de um sistema literário brasileiro a partir da fascinante trajetória dessa personagem histórica”, acrescenta.
Como salienta o professor, a petalogia, na forma de uma “ciência da linguagem”, disseminou um ceticismo generalizado a respeito de tudo o que se ouvia ou se lia. Tal ceticismo, para Bruno Martins, faz falta nos dias de hoje, diante de um universo midiático povoado de celebridades, fake news e “dos mais variados e cínicos arautos da justiça, da moral, da religião, dos bons costumes”. “Se aceitarmos a ideia de que todos somos mais ou menos petalógicos, talvez seja possível, por exemplo, saltar sobre os abismos que a atual polarização política nos apresenta. Imaginação e autocrítica são duas lições da Petalógica para o mundo contemporâneo”, avalia o autor.
Livro: Corpo sem cabeça: o tipógrafo-editor e a Petalógica
Autor: Bruno Guimarães Martins
Editora UFMG
Área: História
Coleção: Origem
Preço: R$54