Descolonizar é preciso
Em conferência no ciclo UFMG, 90, Boaventura de Sousa Santos defende valorização do conhecimento produzido na perspectiva de grupos marginalizado
As formações transversais, o programa intercultural de educadores indígenas, a licenciatura no campo, a criação de vagas suplementares para representantes de povos indígenas e a instituição de cotas na pós-graduação são importantes passos que a UFMG vem dando rumo à descolonização, processo relacionado com a valorização do conhecimento produzido sob a perspectiva de grupos não hegemônicos. A avaliação foi feita pelo intelectual português Boaventura de Sousa Santos, na tarde do último dia 25, durante a conferência As epistemologias do Sul e a descolonização da universidade, que integrou o ciclo UFMG, 90 – desafios contemporâneos. “Esta universidade segue um bom caminho, e espero que a minha palestra ajude a aprofundar esse processo e a transformar a UFMG em exemplo de descolonização e democratização”, disse Boaventura, diretor do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.
“Sinto-me em casa nesta casa”, disse o intelectual a uma plateia de cerca de 1,2 mil pessoas que lotou dois auditórios no campus Pampulha – o do CAD1, onde ele estava presencialmente, e o da Reitoria, para o qual a conferência foi transmitida. Boaventura foi homenageado em um ritual protagonizado por estudantes da formação intercultural de educadores indígenas e apresentado pela professora e amiga Nilma Lino Gomes, da Faculdade de Educação. Ela recordou a parceria de mais de uma década entre o Programa Ações Afirmativas da UFMG e o CES, dirigido por Boaventura. E acrescentou que ele é “fonte de inspiração” para os trabalhos do grupo do qual participa na UFMG, principalmente em razão de suas reflexões sobre as epistemologias do Sul.
Na visão de Boaventura Sousa Santos, a descolonização universitária ocorre em várias partes do mundo: “África do Sul e Inglaterra, por exemplo, vivem esse processo”. No caso da nação sul-africana, ele lembrou as manifestações estudantis na Universidade da Cidade do Cabo (UCT), uma das mais importantes do país. “Há um entendimento entre os estudantes negros de que lá não houve uma transição do apartheid para o pós-apartheid. O que existe é um neoapartheid”, definiu.
Na Inglaterra, a onda de descolonização alcançou a tradicional Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS, na sigla em inglês), que formou importante contingente de administradores coloniais. Lá, os estudantes passaram a reivindicar a inclusão do pensamento de filósofos africanos nas grades curriculares.
Ciências sociais
Boaventura também contextualizou o papel das ciências sociais no processo de colonização universitária. Segundo ele, esse campo do conhecimento nasce no século 19 exatamente para compreender e buscar respostas para o esgarçamento do tecido social provocado pelas crises no campo e nas cidades europeias. Desse processo, adveio, por exemplo, a ideia de desenvolvimento, que se insere no arcabouço ideológico da colonização. “Havia cinco ou seis países desenvolvidos na época. Portanto, o restante era subdesenvolvido, de acordo com essa visão eurocêntrica. E isso implicava também a desvalorização da religião, da história, da cultura, das instituições e do direito dessas nações ditas não desenvolvidas”, afirmou ele.
A chamada “linha abissal”, um dos principais conceitos da lavra de Boaventura de Sousa Santos, também foi abordada durante a conferência. “Trata-se de uma linha tão importante que ninguém a vê”, disse. Essa divisória tênue separa grupos sociais e reforça dominações políticas, econômicas e culturais, mesmo com o fim da colonização. “Acabaram-se as sociedades metropolitanas e coloniais, mas permaneceram as formas de sociabilidade metropolitana e colonial”, distinguiu.
Para ilustrar seu raciocínio, ele citou dois exemplos hipotéticos bem concretos: o negro que estuda em uma universidade, mas que pode ser morto pela polícia ao atravessar a rua, e a cozinheira, que sai do trabalho e também se arrisca a ser assassinada pelo companheiro ao chegar em casa. “No primeiro ambiente [na universidade ou no trabalho], os dois são sujeitos com direitos, mas quando saem para a rua ou retornam para casa, transformam-se em suburbanos [cidadãos de segunda classe].”
Ao fim da conferência, o professor de Coimbra afirmou que uma universidade descolonizada é aquela que reconhece a sociologia das ausências, ou seja, que é capaz de denunciar a invisibilidade de que são vítimas os movimentos sociais e os grupos indígenas, quilombolas e de mulheres. Ainda de acordo com ele, a descolonização da universidade também envolve a adoção de currículos mais fluidos e abertos, num processo que compara ao curso do rio e da lava do vulcão, que “é criativo e contingente”. “O problema é que nossos currículos foram estruturados como a linha de montagem de uma fábrica. Com esse curso, não será possível descolonizar. Descolonizar é praticar a ecologia de saberes. Um médico tradicional da Amazônia não tem o mesmo ritmo de um acadêmico. Ele tem seu ritual, seu silêncio. Isso precisa ser respeitado”, defendeu.
[Versão ampliada desta matéria foi publicada no Portal UFMG, seção UFMG 90 anos, em 26/04/2017]