Uma barreira para o progresso da pesquisa básica
A aquisição de medicamentos para a pesquisa básica é assunto crucial e delicado no dia a dia de quem se dedica à área no Brasil. Em nome do Departamento de Farmacologia do ICB, reflito sobre o assunto neste artigo, em virtude de sua importância para o progresso da pesquisa básica, que pode repercutir de maneira significativa no desenvolvimento do país.
É a pesquisa básica que nos fornece os meios para encontrar respostas a questionamentos que inicialmente parecem irrelevantes, mas que têm importância fundamental em qualquer área do conhecimento. Ninguém à época de Newton imaginaria que o fato de uma maçã ter caído da árvore em sua cabeça resultaria no desenvolvimento de artefatos que cruzariam galáxias.
Na área de farmacologia, um bom exemplo é a acetilcolina, molécula produzida pelo nosso corpo, que se revelou fundamental para o funcionamento dos intestinos, coração e cérebro – e que está em ação enquanto você lê estas linhas.
A pesquisa básica, particularmente na área das ciências biológicas, pode prover modelos que favorecem a simulação do funcionamento de parte ou de um organismo inteiro, que denominamos estudo da fisiologia. Analogamente, esses modelos possibilitam o estudo da farmacologia, isto é, a investigação de como os medicamentos funcionam nesses mesmos modelos experimentais, em condições de saúde (fisiológicas) ou de doença (patológicas).
Assim, desenvolvemos em nossa especialidade, especificamente na farmacologia, modelos experimentais em que os medicamentos recém-sintetizados ou já comercializados podem ser introduzidos e seus efeitos, verificados. Dependendo desses efeitos, sua aplicação pode ser vislumbrada, por exemplo, no uso de uma molécula capaz de reduzir a proliferação de células nos tubos de ensaio para o desenvolvimento de novo tratamento para o câncer ou em novo medicamento para o alívio da inflamação e da dor.
As condições de aquisição de medicamentos novos ou já comercializados para a pesquisa básica são precárias e constituem uma barreira quase intransponível. Primeiro, porque as principais indústrias farmacêuticas são multinacionais e não têm interesse em que seus produtos sejam estudados no Brasil – apenas consumidos. Há indústrias farmacêuticas nacionais, poucas ainda, que se dedicam a determinados nichos químicos e farmacêuticos, a exemplo de produtos destinados a hospitais de clínica humana ou veterinária.
Uma das alternativas possíveis aos pesquisadores de área básica no Brasil é conseguir doações desses produtos, caso estejam no escopo de sua pesquisa. Entretanto, obter das empresas poucos miligramas ou mililitros de determinado composto torna-se, muitas vezes, uma verdadeira saga. Não há tradição no Brasil – diferentemente do que ocorre em países desenvolvidos como a Inglaterra, França e os Estados Unidos – de empresas farmacêuticas procurarem os departamentos de área básica, especialmente os de farmacologia, para oferecerem seus produtos para testes, ou simplesmente fornecer esses produtos a partir de solicitação institucional.
Uma dificuldade ainda maior é encontrada quando não se tem acesso a determinado produto, desenvolvido por empresa multinacional, que precisa ser usado na pesquisa para dar a resposta final de um teste, até mesmo por eventuais questões de segredo de patentes. De um modo geral, os pesquisadores brasileiros desistem de fazer essa última demonstração em seu trabalho e acabam por publicar resultados de seus estudos em revistas científicas de menor impacto, com perdas incomensuráveis para o país. Se o pesquisador mantém contatos com colegas no exterior que dispõem do produto ou pode acessar um intermediário em determinado departamento da empresa multinacional para obtê-lo, ele tende eventualmente a contornar a dificuldade e ser “premiado” com a possibilidade de fazer o experimento-chave. No entanto, esse tipo de situação é excepcional e depende da notoriedade do pesquisador e de sua rede de relações.
Evidentemente, outros interesses corporativos podem estar em jogo, mas a verdade é que é extremamente desestimulante prosseguir na pesquisa científica nas áreas básicas no Brasil, em razão das muitas barreiras a serem superadas. Após 37 anos de atividade na pesquisa básica em farmacologia, confesso que esse é um dos motivos que considerei para formalizar meu pedido de aposentadoria. Faço aqui, ainda, um mea culpa como professora-pesquisadora em atividade nesta Universidade, visto que só agora abordo o assunto de maneira objetiva, na tentativa de tentar resolvê-lo no plano institucional. Como o problema persiste mesmo depois de três décadas, conclui-se que nada de relevante foi feito em todo esse tempo para solucioná-lo. O fato é que os grupos vinculados a várias áreas de saúde da UFMG que desenvolvem pesquisa básica – e eles são muitos – não somaram esforços para discutir e montar uma estratégia para a solução do problema.
Este artigo, no entanto, não visa desestimular os jovens professores-pesquisadores, que já entraram na Universidade e estão extremamente motivados para executar o trabalho que se espera deles. O objetivo é tão somente alertá-los para essas dificuldades e estimular a operacionalização de estratégias coletivas, institucionais e definitivas para modificar de vez esse quadro. Afinal, reconhecer o problema é o primeiro passo para resolvê-lo.
Janetti Nogueira de Francischi - Professora decana do Departamento de Farmacologia do ICB