Acadêmicos na Política
"A sustentabilidade é turquesa"
Entrevista: José Eli da Veiga
Em uma sexta-feira do último verão, o economista José Eli da Veiga tinha pressa. Vendo o tempo fechar, imaginou de seu gabinete, na Cidade Universitária da USP, que cairia uma chuva logo a seguir e pediu à reportagem da Revista Diversa que ligasse mais tarde, quando já estaria em casa.
O trajeto entre a Cidade Universitária e sua residência, no Alto de Pinheiros, em São Paulo, foi vencido de bicicleta, hábito que cultiva desde sua passagem pela Inglaterra nos anos de 1990. Uma hora depois, José Eli, devidamente instalado, explicava que a motivação das pedaladas não era exatamente ambiental. “Bicicleta faz bem para a saúde”, justificou, para depois conceder: “De fato, saúde e meio ambiente se misturam”.
Para quem conhece a trajetória do economista, seu saudável e sustentável hábito de deslocar-se para o trabalho de bicicleta não chega a causar estranheza. Ele foi um dos primeiros economistas brasileiros a incorporar o tema do desenvolvimento sustentável à práxis acadêmica quando estudou na França, nos idos de 1970. Na época, o termo em voga era ecodesenvolvimentismo.
Um dos coordenadores do programa de governo da candidata Marina Silva à Presidência da República em 2010, José Eli, de 63 anos, é professor titular da USP, pesquisador do Núcleo de Economia Socioambiental (Nesa) e orientador em dois programas de pós- -graduação na mesma universidade: Relações Internacionais e Pesquisas Ecológicas. É autor de 20 livros, entre os quais Sustentabilidade: a legitimação de um novo valor, um dos assuntos desta entrevista, na qual também fala sobre a pegada de carbono, os indicadores de sustentabilidade, as tendências da Rio+20, que será realizada em junho, e o Protocolo de Quioto, do qual é crítico implacável.
Antes da popularização do conceito de desenvolvimento sustentável, o senhor já o empregava em sua práxis acadêmica...
Vale esclarecer que desenvolvimento sustentável não é conceito. Desenvolvimento sustentável pode ser visto como um novo valor. A era moderna foi inaugurada com três grandes ideais, representados pelas cores da bandeira francesa. O azul da liberdade, o branco da igualdade (ou equidade) e o vermelho da solidariedade. São três ideais que nada têm a ver com a nossa relação com o meio ambiente, porque no final do século 18 havia a percepção de que a natureza era infinita. E isso continuou mais adiante, por exemplo, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, um documento importante, mas nada do que tem lá se refere às responsabilidades com a natureza. É muito recente a consciência de que há um problema da humanidade com o ambiente.
Quando a humanidade se deu conta disso?
Isso só começou nos anos 1970, mais precisamente em 1972 com a Conferência de Estocolmo, na Suécia. A partir de então, emergiu outro ideal – ou valor – que é a sustentabilidade, e, se pudesse, escolheria a cor turquesa para representá-lo. É um equívoco imaginar que a cor da sustentabilidade é o verde. O grande problema ambiental da modernidade é o aquecimento global e só conseguimos suportá-lo minimamente devido aos sumidouros de CO2, uma vez que os esforços para reduzir emissões não têm dado grandes resultados. O que mantém o clima em condições razoáveis são os processos naturais que chamamos de sumidouros, responsáveis pela absorção de gás carbônico – 60% estão nos oceanos e 40% são cobertura vegetal. Isso mostra que o azul é tão importante quanto o verde. E azul com verde é turquesa.
A sustentabilidade é o quarto valor da modernidade?
Sim, é um valor como os outros. E como valor não pode ser conceituado. A lei da gravidade, por exemplo, é um conceito, assim como o número 2. Nos dois casos, as pessoas têm o mesmo entendimento em relação a eles. Mas quando entramos no terreno dos valores não existe mais essa certeza. Se ouvirmos dez pessoas, teremos dez definições para justiça. O mesmo vale para democracia. Por isso, é ingênuo pedir definição sobre sustentabilidade.
O senhor diz que não é possível definir ou conceituar sustentabilidade, mas já existem esforços para estabelecer indicadores de sustentabilidade...
Bem, definições existem, e a mais comum, a do Relatório Brundtland [documento intitulado Nosso Futuro Comum, publicado em 1987], diz que a sustentabilidade atende às necessidades do presente sem comprometer as do futuro. Mas essa conceituação comete uma falha ao falar em necessidades. Preservar o mico-leão-preto é relevante? Talvez para um biólogo, sim, mas do ponto de vista da evolução social, querer que uma espécie como o mico-leão-preto não desapareça não pode ser uma necessidade. Garantir o futuro depende muito mais das oportunidades e escolhas do que do atendimento a supostas necessidades. Até mesmo a definição mais aceita é facilmente criticável. Quanto aos indicadores, a história é diferente. Nos Estados Unidos, há um ditado segundo o qual o que é importante precisa ser medido. E nessa direção surgiu um monte de tentativas. O que está se firmando com maior legitimidade é a pegada ecológica, que se baseia no esforço de comparar a pressão global do consumo com a biocapacidade dos ecossistemas de regenerar aquilo que se extrai deles.
É a resiliência?
É um pouco diferente. A resiliência diz respeito à capacidade de um ecossistema de se recompor após um choque. A pegada mede outra coisa. Até os anos 1960, a humanidade consumia metade da capacidade do globo; hoje consumimos uma vez e meia. É como se tivéssemos uma conta no cheque especial com o equivalente a 50% de nossa renda no vermelho. Do ponto de vista ambiental, significa que a natureza vai precisar de 1,5 ano para recompor o que consumimos em um ano.
Qual é o limite?
Ninguém sabe. Até porque essa proporção está aumentando. Hoje, ninguém pode prever cientificamente que, quando essa relação chegar a 2, haverá uma catástrofe. Mas o fato é que estamos passando um cheque sem fundos já há algum tempo.
Com base nesses indicadores, é possível identificar sociedades mais sustentáveis que outras?
Seria possível se pensássemos numa abordagem nacional. Mas o problema é global, o que invalida a ideia de que poderiam existir sociedades mais sustentáveis que outras, uma vez que todas são afetadas pelo aquecimento global. Claro que uma ilha ameaçada de desaparecer por causa da elevação do nível do mar corre muito mais riscos que um país da Escandinávia, que possui ótimos indicadores – na prática, a região seria até beneficiada pelo aquecimento global porque lá faz muito frio. Voltando à pegada ecológica, ela faz uma relação da pressão do consumo com a biocapacidade não de um país ou de uma região, mas com a biocapacidade média do globo. Os países que mais pressionam a natureza vão muito além da média global. Alguns chegam a exercer uma pressão três ou quatro vezes maior que a média.
"Não dá para achar bom que um país tenha mais biocapacidade do que pressão sobre o consumo, porque isso indica que ele não se desenvolveu."
Esses indicadores poderiam substituir ou agregar valor, por exemplo, ao PIB, que mede a geração de riquezas, mas não estabelece uma relação entre consumo e disponibilidade de recursos?
Essa é uma discussão antiga, e o que existe de melhor sobre isso está no Relatório Stiglitz-Sen-Fitoussi, organizado pelos economistas Joseph Stiglitz, Armatya Sen e Jean-Paul Fitoussi. Foi um trabalho que reuniu 27 economistas de primeira linha, entre os quais 10 ganhadores do Prêmio Nobel. Eles constatam que deveríamos ter ao menos três grandes indicadores. E não seria o PIB, que é uma medida de produção e não de consumo. Chegaram à conclusão de que a melhor medida seria a chamada renda líquida familiar ajustada. O problema é que se trata de um cálculo que hoje poucos países teriam condições de fazer, pois as agências estatísticas, inclusive no Brasil, não coletam dados com essa perspectiva. Vai demorar um pouco para as agências fazerem esse cálculo. Em segundo lugar, eles avaliam que é preciso ter um índice de qualidade de vida ou de bem-estar, abordando saúde e segurança em várias dimensões, e o terceiro indicador mediria a sustentabilidade. Teria um caráter biofísico e não monetário, como alguns propõem. E consideram que a melhor indicação é a da metodologia da pegada; só que em vez da pegada ecológica global, propõem a pegada carbono e mais duas ou três, como a pegada biodiversidade e a hídrica. Com isso, teríamos uma boa avaliação não exatamente da sustentabilidade, mas da contribuição que cada país oferece à insustentabilidade global. E isso remete ao que já falamos sobre os valores, da dificuldade de estabelecer definições aceitas universalmente. Só que quando optamos pelo caminho da negação, a gente acaba se entendendo. E foi exatamente isso que eles fizeram ao propor uma forma de medir a contribuição para a insustentabilidade global. Não dá para achar bom que um país tenha mais biocapacidade do que pressão sobre o consumo, porque isso indica que ele não se desenvolveu.
O que o mundo pode esperar da Rio+20?
Todos os relatórios regionais já foram entregues. O que está emergindo como consenso para a Rio+20 é a possibilidade de estabelecer metas de desenvolvimento sustentável da mesma forma que existem os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs). O problema é que as metas de sustentabilidade que constam dos ODMs são muito precárias.
Elas são vagas?
São pouco abrangentes. Como há o reconhecimento de que é necessário estabelecer metas de sustentabilidade que vão além das metas do milênio, é possível que elas não sejam detalhadas na Conferência no Rio, porque exigiriam muito estudo, mas certamente sairá uma declaração formal de que é preciso ter meta. Além disso, espera-se que o atual Conselho Econômico e Social (Ecosoc), da ONU, seja transformado em Conselho de Desenvolvimento Sustentável, uma forma de concentrar nessa instância uma discussão hoje feita pelo Pnuma [Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente]. Outra tendência é o fortalecimento do próprio Pnuma, que hoje se encontra muito enfraquecido.
Em que sentido? Político? Faltam recursos?
Tudo. Nesse caso, a medida do político é indicada pelo volume de recursos. E finalmente, pretende-se apontar um mapa do caminho para a economia verde, que a rigor ninguém sabe exatamente o que é. Há muita confusão em torno disso. O Pnuma produziu um documento com mais de 600 páginas e basicamente o que ele diz é que se você aplicar 2% do PIB em energias renováveis a economia vai continuar crescendo sem afetar muito o meio ambiente. Mas a pegada ecológica mostra uma coisa mais séria: se não conseguirmos, em algum momento do futuro, estabilizar o consumo, dificilmente reduziremos a pressão sobre os recursos naturais.
O Brasil tem um reservatório de recursos naturais (maior reserva de água doce do mundo, fontes alternativas de energia, Floresta Amazônica) que o credencia a ser uma potência ambiental. O senhor vê movimentos de nossas lideranças no sentido de aproveitar essa oportunidade histórica?
Tenho reservas em relação a essa ideia de potência ambiental. Acho irreal pensar que o mundo se define em função de uma condição ambiental, pois o que pesa é poderio econômico e militar. Essa expressão potência ambiental, se não me engano, foi criada pelo cientista Carlos Nobre [do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], o mais importante estudioso das mudanças climáticas no Brasil, e tem o mérito de chamar a atenção de nossas autoridades para o trunfo que temos em mãos. Mas esse trunfo não está sendo bem usado. Nossos recursos naturais não têm sido empregados de forma inteligente. A nossa energia, por exemplo, é vendida barata para sustentar a indústria do alumínio voltada para exportação. Outro problema é a descoberta da camada do pré-sal. Embora entenda que a exploração de petróleo seja um atraso considerando o atual cenário, não há como negar que ele vai gerar um montante de recursos que não sabemos se serão bem utilizados.
As perspectivas não parecem muito promissoras...
As coisas não estão muito claras. Em alguns momentos, os sinais são bons, em outros, nem tanto. Há, por exemplo, a proposta de que a Petrobras, na exploração do pré-sal, use a técnica CCS [da sigla inglesa Carbon Dioxide Capture and Storage] para capturar e armazenar carbono. Isso é bom. Por outro lado, o empresário Eike Batista vai explorar parcela do pré-sal, o que não sei se é bom. Ele está levando para a sua empresa alguns dos melhores quadros da Petrobras, o que representa perda de capital intelectual e técnico.
"Comparo o Protocolo de Quioto a um barco que está afundando e que obriga aqueles que abriram os buracos a tapá-los. Os outros, que chegaram depois, acham que podem continuar a furar o barco, pois precisam se desenvolver."
O senhor é um crítico do Protocolo de Quioto. Por que ele não funcionou?
Ele já partiu de uma premissa errada, a da divisão entre países industrializados e não industrializados como baliza para definir quem deveria ou não reduzir as emissões. Hoje está mais claro que essa divisão deveria ocorrer pelo menos em três grupos – os industrializados, os não industrializados e os emergentes –, neste caso, reunindo não só as nações do bloco Bric (Brasil, Rússia, Índia e China), mas outros como México, África do Sul. A China, por exemplo, emite mais do que os Estados Unidos. Comparo o Protocolo de Quioto a um barco que está afundando e que obriga aqueles que abriram os buracos a tapá-los. Os outros, que chegaram depois, acham que podem continuar a furar o barco, pois precisam se desenvolver. Parece-me uma visão injusta, porque não se podem culpar as gerações anteriores pelas emissões do passado, quando não havia o conhecimento científico sobre os efeitos delas. Parto do princípio de que quem pode mais deve contribuir mais, e não me refiro apenas a nações mais avançadas industrialmente. Há países com grande capacidade tecnológica, como Israel, Taiwan e Coreia, que podem participar desse esforço. No fundo, Quioto virou uma trava. Muitos dizem que precisam cumprir Quioto até o fim e assim se vai a oportunidade de se acelerar a proposição de um novo acordo com metas mais significativas.
Como o senhor vê o papel da universidade nessa discussão sobre o desenvolvimento sustentável?
Em tese a universidade desempenharia um papel de primeira grandeza. Quem mais poderia fornecer subsídios para o desenvolvimento sustentável? Mas na prática isso não ocorre. Analisando a universidade brasileira aqui de São Paulo, tenho a impressão de que estamos na retaguarda. Uma universidade como a USP poderia, por exemplo, recolher o óleo de fritura e transformá-lo em biodiesel, mas não o faz. É verdade que há iniciativas pontuais. Aqui na USP o Instituto de Energia possui uma pequena usina de geração de energia a partir de biomassa. Mas é algo isolado. O ideal seria que os reitores se unissem e formassem grupos cooperativos de trabalho para pensar e implantar soluções de sustentabilidade. Deveríamos estar na frente, mas não é o que acontece.