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Nº 19 - Ano 2012 - 07.05.2012

Acadêmicos na Política

Decifra-me ou devoro-te

De como o poder atrai e repele os acadêmicos

Em 19 de maio de 1993, o então ministro das Relações Exteriores, Fernando Henrique Cardoso, foi nomeado ministro da Fazenda pelo presidente Itamar Franco. O objetivo da mudança era acabar com a hiperinflação que vinha assolando o país, ou pelo menos reduzi-la. Um ano depois, a Medida Provisória 343 instituiu a Unidade Real de Valor (URV), estabeleceu regras de conversão e uso de valores monetários, iniciou a desindexação da economia e determinou o lançamento de uma nova moeda, o Real. Além de golpear a alta dos preços, a medida acabou levando Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República.

Até 29 de dezembro de 1992, no entanto, data do impeachment de Fernando Collor de Melo, FHC mal poderia imaginar que sua vida política seguiria tal rumo. Até aquele momento, o ex-presidente anunciava que seria candidato mais uma vez ao Senado Federal e, caso derrotado, voltaria para o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), onde escreveria suas memórias. A fortuna, todavia, encarregou-se de mudar o rumo dessa história, analisa o cientista político Bruno Reis, professor do Departamento de Ciência Política (DCP) da UFMG. 

“O Itamar estava se atrapalhando e, num certo momento, os tucanos se tornaram fiadores de seu governo”, diz. Para ele, naquele momento, FHC foi a pessoa certa no lugar certo, pois sua origem acadêmica acabou sendo fundamental para o reagrupamento de economistas que, nos anos 80, tinham “dado com os burros n’água”.  Bruno acredita que só mesmo a aura intelectual em torno de Fernando Henrique permitiria a um ministro da Fazendo se impor, de um lado, sobre o então presidente Itamar, homem de temperado instável, e, de outro, sobre economistas com ideias tão diferentes das do chefe do Executivo.

Recrutamento paraleitoral

Intelectuais como o ex-presidente FHC que, em algum momento de suas vidas, trocam a academia pela política, não são raros. Mas o que leva um acadêmico, pesquisador, professor a trocar o espaço universitário, em tese mais cordial, pelo ambiente muitas vezes hostil da política? A resposta, evidentemente, varia de acordo com cada caso, mas há alguns caminhos mais comuns. Segundo Bruno Reis, existe um recrutamento predominantemente paraeleitoral, sobretudo para cargos em secretarias e ministérios. “Raramente um acadêmico entra na política pela porta da candidatura eleitoral”, afirma.

Alguns exemplos desse tipo de trajetória são as ex-reitoras Vanessa Guimarães Pinto e Ana Lúcia Gazzola. A primeira atuou como secretária de ensino superior no Ministério da Educação e, mais tarde, como secretária de Estado de Educação de Minas Gerais, cargo ocupado atualmente por Gazzola.

O professor Rodrigo Patto Sá Motta, do Departamento de História da UFMG, especialista em história política, acrescenta que a formação intelectual torna os acadêmicos facilmente recrutáveis para a política. “Eles dominam a arte da palavra, do discurso”, aponta. Esse aparato intelectual se torna mais relevante em um país ainda iletrado como o Brasil, onde o acesso ao ensino superior foi, durante muito tempo, restrito, e historicamente existe uma grande distância entre elite e massa popular.

Mas há também casos em que o interesse pela política é anterior à academia. Ex-ministro da Fazenda, o professor emérito da UFMG Paulo Haddad – um dos fundadores do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da Universidade – conta que, como especialista em planejamento, sempre quis trabalhar no setor público. “Não foi assim uma convocação que me encontrou desprevenido, pelo contrário, era uma vocação”, explica.

Escola política

Trajetória menos comum é a do atual governador de Minas, Antonio Anastasia. Classificado pelo cientista político Bruno Reis como um “homem de Estado”, o chefe do Executivo mineiro, apesar de ter disputado sua primeira eleição apenas em 2010, tem vasta carreira como servidor público. Seu percurso no estado, aliás, é bem mais longo do que como acadêmico. “Não acredito que muita coisa no perfil dele tenha sido moldada na UFMG. Tanto é que ele tem uma atuação discreta na instituição”, reflete Reis. 

Por perfil discreto o pesquisador entende o fato de Anastasia, vinculado à Faculdade de Direito, nunca ter participado da administração interna da Universidade. Embora ressalte as diferenças entre esta atividade e a política partidária propriamente dita, ele acredita que, para a maioria dos acadêmicos, tais experiências acabam funcionando como uma escola política. Segundo Bruno, a universidade pública é um grande condomínio. Ao se tornar chefe, seja como coordenador de curso, diretor de unidade, pró-reitor ou reitor, o professor assume responsabilidades com muito pouco poder. Para fazer as coisas acontecerem, diz ele, é preciso persuadir as pessoas, produzir maiorias mais ou menos estáveis e criar certas arquiteturas políticas.

No caso específico de ex-reitores, o historiador Rodrigo Patto argumenta que a boa atuação como dirigente de uma universidade acaba credenciando o acadêmico para a gestão pública e, sobretudo, lhe confere visibilidade. 

A trajetória da ex-reitora Vanessa Guimarães Pinto, por exemplo, confirma essas análises. Mas ela acredita que, além de sua experiência como principal dirigente da UFMG entre 1990 e 1994, ter assumido a presidência da Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino (Andifes) também foi fundamental para dar-lhe projeção fora dos muros da academia. “Quando o Fernando Henrique me chamou (para o Ministério da Educação), certamente ele identificou a UFMG, que é uma universidade importante, mas também viu o tipo de liderança que eu exercia junto às demais instituições do país”, conta.

Quando o assunto é o aprendizado político, ela é categórica: “Não tenho dúvida de que uma universidade prepara o dirigente para desafios maiores”. Em sua opinião, todo reitor de uma grande universidade sai transformado ao final, pois aprende a propor formulações mais complexas, que envolvem desde questões de ordem ética até financeiras. Mesmo assim, a mudança para o ambiente político nem sempre é uma grata surpresa. “Quando fui reitora,  achava que estava enfrentando um enorme problema”, comenta. Mas ao se deparar com o governo tucano predominantemente paulista de FHC, acostumado a lidar quase exclusivamente com universidades estaduais, e tendo o dever de pensar no conjunto de universidades do Brasil, Vanessa diz que, só então, percebeu que o desafio poderia ser ainda maior. “Eu era a voz da universidade federal. Não foi fácil”, desabafa. Por fim, ao se tornar secretária de Educação de Minas Gerais e enfrentar o desafio de alfabetizar milhares de crianças, deu-se conta de que sempre é possível trocar um problema por outro de proporções ainda maiores.

Acadêmico versus político

Dos principais cargos públicos que ocupou, Vanessa avalia que sua passagem pelo Ministério da Educação foi a mais difícil. Até aquele momento, toda sua bagagem vinha da experiência como reitora. “Não é algo que você simplesmente transpõe. É preciso aprender a circular naquele novo ambiente”, observa, lembrando que um reitor não precisa, necessariamente, dialogar com a classe política. Ao contrário, as relações com governos ou com parlamentares são tão eventuais que, segundo ela, alguns podem passar um mandato inteiro sem fazê-lo. 

Ao migrar para o MEC, a professora conta sobre algumas dificuldades que teve para se adaptar. “Eu estava acostumada a discutir qualquer coisa até de madrugada”, diz. De um lado, ela se encantava com algumas coisas, como a criação do Fundeb. Porém, no campo do ensino superior, havia grande pressão, sobretudo das empresas privadas. “Não que a universidade não tenha grupos de pressão. Mas as relações são muito mais cordiais”, constata. 

Para o cientista político Bruno Reis, enquanto alguns acadêmicos podem se sentir muito à vontade no ambiente político, é normal que outros se assustem. O primeiro ponto que levaria a tal estranhamento seria o fato de que professores são muito acostumados a serem ouvidos, nem que seja em sala de aula. Ele brinca: “As reuniões de órgãos colegiados, por exemplo, são um agrupamento de professores habituados a dar sua opinião minuciosamente detalhada sobre todos os assuntos, com frequência e sem o menor senso de propósito”. Esse encantamento com a própria apreensão da realidade, diz Bruno, faz com que os intelectuais se ofendam com facilidade ao migrarem para um mundo onde nem sempre suas opiniões serão levadas em conta.

Tal característica, no entanto, é exatamente oposta à qualidade esperada de um político. “Ser um bom político é mais difícil que ser um bom acadêmico. Talvez por isso os políticos sejam tão raros”, analisa Bruno. A receita não é simples: é preciso ter clareza suficiente de propósitos para liderar, mas, ao mesmo tempo, ser suficientemente flexível para identificar possibilidades de ação, maiorias potenciais, inviabilidades e saber moldar certas circunstâncias. 

Enquanto o acadêmico deve ser assertivo e dizer o que pensa, mesmo contra a corrente (já que é treinado a “buscar a verdade”), o político deve evitar posicionar-se gratuitamente, pois quando fala não está mais dando opinião, e, sim, externando posição oficial. “É um choque cultural relevante. Os políticos com origem acadêmica tendem a se mostrar um tanto desastrados e propensos a gafes”, sintetiza Bruno.

Mas quando se questiona se tal dificuldade de adaptação deve-se à mudança para uma estrutura de poder que não é baseada na meritocracia, a resposta é quase unânime. “Mesmo na universidade, a questão da meritocracia não é uma coisa tranquila”, afirma Vanessa Guimarães, embora reconheça que “a universidade é o local onde a meritocracia tem mais chances de se impor no Brasil”. 

Na opinião do historiador Rodrigo Patto, a administração da universidade também é um jogo político. “Não é só meritocracia. Há um jogo de alianças.” Ele reconhece que o cenário não é o mesmo da política  institucional, partidária, mas diz que ambos se aproximam. 

Areia movediça

No século 15, Nicolau Maquiavel, em sua obra mais célebre, O príncipe, afirmou que “de fato, o modo como vivemos é tão diferente daquele como deveríamos viver, que quem despreza o que se faz e se atém ao que deveria ser feito aprenderá a maneira de se arruinar, e não a defender-se”. Trocando em miúdos para a realidade de hoje: mesmo imbuído dos melhores valores e desejando dar a melhor contribuição possível, quem pisa no terreno da política precisa de certa malícia para não cair em areia movediça.

Para o ex-ministro Paulo Haddad, um acadêmico não pode esperar que, saindo da universidade, terá facilmente o mesmo sucesso na vida pública, uma vez que se trata de dois estilos diferentes de atuação. Na universidade, lembra o professor emérito, é possível trabalhar com modelos abstratos, esquecendo a parte institucional. Mas quando se chega à vida pública, é preciso lidar com dificuldades reais, dívidas, chefes de Executivo, parlamentares e funcionários públicos. “Planejamento, para mim, é 20% ciência, que vem da universidade, e 80% arte”, reflete.

Todas essas dificuldades talvez possam ser resumidas em uma expressão: jogo de poder. “Você não pode achar que é bom ou ruim. Ele existe”, resume Haddad. Um dos aprendizados da vida pública, aponta, é jogar esse jogo. Não obstante, a política pode ser truculenta o suficiente para enfraquecer até os ânimos mais dispostos. O próprio Haddad narra: “Quando saí do Ministério da Fazenda, chamei a imprensa e anunciei: na vida pública a gente tem que escolher entre a ética e o poder;  estou saindo porque optei pela ética”. 

Assim como a experiência na administração universitária não pode ser transposta integralmente para o mundo político, a autoridade acadêmica vale como tal, mas não se transforma por si só em autoridade política. Nem deveria, como defende Bruno Reis. O pesquisador que segue para a vida pública pode se sentir insultado em alguma medida com a dura realidade, mas precisa, como qualquer outro que participa desse jogo, mostrar a viabilidade da causa que pretende defender. “Talvez para o acadêmico seja mais agudo, na medida em que, quando ele entra na política mais maduro, já tem certa reputação e certo comprometimento prévio com uma causa”, completa.

O problema, na opinião do cientista político, é acreditar que uma coisa anula outra. “O que eu tenderia a recusar é a alternativa: ou você dá a contribuição, ou você é engolido pelo poder”, diz. Se o pesquisador que migra para a política tem uma concepção ambiciosa de sua contribuição, é preciso que aceite as regras do jogo. O desafio, na verdade, seria respeitar essas regras sem perder de vista a noção da contribuição pretendida. 

Nesse ponto, acrescenta Bruno, se pouco ajuda aquele que, no meio do caminho, esquece a que veio e acaba buscando o poder pelo poder, também não é de grande valia o acadêmico que sobe ao palco político imbuído da contribuição que quer dar, mas desce logo em seguida ressentido porque cortaram sua fala. “Você julga que sua causa é importante. Se ela é importante, não significa que todo mundo estava doido para executá-la. E não basta o acadêmico chegar lá, dar a ideia e achar que logo em seguida as máquinas vão confluir. Se fosse assim nem precisariam dele”, brinca.

Exatamente na medida em que tal contribuição tem algo de importante, ela, de alguma maneira, desloca interesses. “Haverá pessoas que gostaram daquilo e outras que vão combatê-lo. Ou você respeita o jogo e joga, ou você não tem nada para fazer lá”, reforça o pesquisador.

Celeiro de talentos

O ex-ministro da Fazenda e professor emérito da UFMG Paulo Haddad tem uma teoria: “Se você olhar a história administrativa de Minas Gerais, a administração pública mineira sempre foi forte onde a UFMG era forte”. Ele exemplifica: a Escola de Engenharia tinha bons grupos nas áreas sanitária e elétrica, que forneceram quadros para a Copasa e a Cemig, respectivamente. A Faculdade de Ciências Econômicas (Face), por sua vez, por meio de seu grupo de planejamento regional, fez grandes contribuições para o setor em Minas. Essa migração de talentos universitários, segundo Haddad, orientou em grande parte, sobretudo na década de 1970, as políticas públicas no estado. 

Não há estudos conclusivos sobre o tema, mas o cientista político Bruno Reis, do Departamento de Ciência Política da UFMG, diz que a teoria faz sentido. “Durante a ditadura militar, o poder era exercido de forma tecnocrática. Nesse contexto, o governo ia com muita naturalidade buscar o diagnóstico das necessidades do país na universidade”, constata. 

Hoje essa influência continua presente, mas não com a mesma intensidade. “A própria dinâmica da administração pública vai formando seus quadros. Tem a escola de governo da Fundação João Pinheiro. O estado treina pessoas fora, faz convênios”, afirma Haddad. A UFMG, no entanto, continua tendo papel importante na “arrancada inicial” de vários projetos. Em 2010, por exemplo, o Cedeplar coordenou a execução do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Haddad observa que, normalmente, há na universidade um preconceito contra a aproximação da administração pública e das empresas. “Mas isso tem que acabar, porque quando se está do outro lado, na administração pública, você quer muito usar a inteligência da universidade e às vezes tem dificuldades”, argumenta. Como a universidade é autônoma, o ideal seria negociar caso a caso. “Não toda hora, nem todo lugar, nem todo assunto. Ela tem que ter a capacidade de negociar. Mas a contribuição da universidade para o desenvolvimento regional pode ser maior”, alerta o professor Haddad.

Fernanda Cristo