A rota da ignorância do coronavírus
Apesar do enorme volume de informações científicas disponíveis, o mundo atual enfrenta riscos de saúde pública evitáveis, escrevem os professores Geraldo Fernandes e Sérvio Ribeiro
China, Irã e Itália, alinhados de leste a oeste no mapa-múndi, cobrem boa extensão da antiga Rota da Seda e alguns de seus portos finais na Europa. Por essa rota de comércio entre o Oriente e a Europa, a Peste Negra se espalhou, por volta de 1.346, pelas duas regiões com a ganância e o descuido, regados pela ignorância sobre sua causa, por meios de transmissão ou pela ausência dos procedimentos necessários para tratar os doentes.
Hoje, não se pode sequer comparar a quantidade de informação científica disponível sobre o coronavírus com a ignorância absoluta sobre doenças do passado. No entanto, misteriosamente, ainda enfrentamos riscos de saúde pública muitas vezes completamente evitáveis, dado o enorme volume de conhecimento disponível sobre doenças e sobre como curá-las.
Nessa rota moderna, reina uma praga que agora se espalha nas bolsas e na economia global: o autoritarismo. Ele amplia enormemente a pandemia do medo da Covid-19, doença causada pela mutação do coronavírus, e extravasa essa profusão de emoções e de má informação da Europa para as Américas, tanto de forma explícita quanto disfarçada de populismo. E pior: banhada de fake news.
Todos os modelos levam a um cenário dramático de saturação de leitos e colapso para meados de abril. Rege essas previsões um modelo matemático simples, mas de difícil compreensão: a progressão exponencial. Na prática, isso significa dizer que governantes acostumados com realidades paralelas têm muita dificuldade de lidar com fatos científicos.
Para piorar, temos regimes que desprezam o sofrimento da população e não priorizam o atendimento aos doentes. Pegos de surpresa, esses governos se encontrarão (ou já se encontram) diante de uma pandemia e sem leitos e sem maquinário respiratório suficiente para atender ao número esperado de pacientes graves.
Pesquisadores da Ufop, da UFMG, da Fiocruz e do Inecol, no México, por exemplo, estão trabalhando com um modelo de disseminação por aeroportos, que prevê (para cidades do Sudeste e de outras regiões muito conectadas por voos nacionais) que 1% das pessoas nas capitais estarão infectadas depois de dois meses do primeiro caso registrado. No Brasil, isso deverá ocorrer exatamente em meados de abril.
O crescimento exponencial é regido por uma regra que afirma que um caso gera dois ou três, que, por sua vez, geram quatro ou nove, e, consequentemente, geram oito ou 27. Porém, isso vai depender da inclinação dessa curva, ou de como cada ponto dentro dela vai se comportar. Somos nós, população (ou melhor, o nosso comportamento), que definiremos a proporção de como essa curva exponencial e progressiva evoluirá. Mas é certo que a cada intervalo de tempo o número de infectados terá crescido muito mais do que no mesmo período anterior. Ou seja, uma leitura possível é que, se dois meses foram necessários para termos 1% de infectados, se nada for feito para impor isolamento social, em mais duas semanas poderíamos chegar a 50% da população infectada.
Nessa rota moderna, reina uma praga que agora se espalha nas bolsas e na economia global: o autoritarismo. Ele amplia enormemente a pandemia do medo da Covid-19, doença causada pela mutação do coronavírus, e extravasa essa profusão de emoções e de má informação da Europa para as Américas, tanto de forma explícita quanto disfarçada de populismo. E pior: banhada de fake news.
O brasileiro é muito receptivo às campanhas públicas disseminadas pela imprensa formal. E, como prefeitos e alguns governadores assumiram a responsabilidade de fechar tudo, poderemos nos salvar desse quadro caótico, para o qual está nos empurrando a pressão econômica de claro viés escravagista e aparentemente defendida pelo Ministério da Economia, com apoio da elite empregadora do Brasil e do presidente da República.
Além disso, ainda é preciso buscar formas de aliar a indiferença aos mais vulneráveis, especialmente os pobres, com a vocação dos governantes para pautar seu discurso em meias-verdades e pós-verdades – mentiras, portanto! Por exemplo, nos Estados Unidos, a nação mais poderosa do mundo, apenas no dia 10 de março o presidente Trump tomou medidas realistas, alinhadas com a sua poderosíssima comunidade científica, para defender sua população dessa pandemia. Um dia antes, porém, ele delirava sobre suposta irrealidade de fatos científicos. No dia 22 de março, os Estados Unidos já eram o terceiro país mais infectado no mundo.
Aqui no Brasil, no auge da certeza de que nosso cenário já é cinco vezes pior do que o da Itália, nosso governo cortou a maioria das bolsas da Capes para pesquisadores de pós-graduação, muitos dos quais trabalhavam em medicamentos, vacinas ou modelos de monitoramento do avanço da Covid-19. Quando mais precisamos de ciência, menos ciência. Em seu lugar, pressão econômica perversa e autoritária, e um presidente com falas incertas e erradas que desautorizam o Ministério da Saúde, que ainda faz um bom serviço.
Esse cenário se agrava com o quadro social brasileiro (e também africano), em que há o risco de ressurgimento de cepas muito agressivas, conhecidas como virulentas. Em condições naturais, vírus que invadem um novo hospedeiro (no caso o coronavírus infectando a espécie humana) são normalmente muito agressivos, pois o novo hospedeiro não tem muitas defesas. Uma cepa de vírus que se reproduza muito e contamine muita gente terá mais sucesso e seguirá em frente, deixando mais descendentes que outras cepas. Isso é a seleção natural: quem tem mais descendentes é selecionado positivamente.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) impõe uma inversão nesse cenário ao propor que países isolem os indivíduos sintomáticos, em especial em estado grave, e os mais vulneráveis. Tais medidas, no caso de um vírus agressivo e muito reprodutivo, como o coronavírus, permite que o sistema de saúde o encontre rapidamente. Uma vez isolado, levamos a que essa cepa se reproduza menos. Rapidamente, prevalecem cepas menos agressivas na humanidade, pelo chamado processo de seleção artificial.
Por outro lado, em comunidades pobres, em regiões sem vigilância sanitária e controles, a chance de reaparecem cepas agressivas é grande e preocupa. Um doente altamente contagioso que morrer e for enterrado sem o devido monitoramento do Estado pode provocar o surgimento de síndromes gripais ainda mais terríveis que se espalharão muito rapidamente.
Qualquer isolamento tardio é inócuo e puramente político. Foi o que aconteceu na Itália, onde, depois de um caos pandêmico e político, houve negligência das recomendações científicas feitas logo no começo do surto. Esse negligenciamento pode ter sido um componente importante a possbilitar o espalhamento do vírus para a América Latina.
Da mesma forma, lançar profissionais da saúde sem a devida proteção ao combate da doença também ajudou a acelerar sua disseminação, tanto na China quanto no Irã, que registra cerca de 40% de médicos infectados.
A Itália é governada por uma coligação eleita pelas forças de extrema direita e da “democracia direta”. Ou seja, “eu invento, eu tuíto, você acredita”. Governam com factoides sem intermediação, ponderação ou conferência de credibilidade. O Irã e a China são países assumidamente autoritários, que impõem um controle político rígido na circulação de informações e acumulam problemas pela inefetividade de resposta científica ao surgimento da doença. A resposta da China à crise sanitária, embora tenha sido adequada, despertou, no início da pandemia, incertezas internacionais quanto à dimensão do problema.
Mas e o Brasil? Também temos uma comunidade científica poderosa, reconhecida internacionalmente, e um posicionamento de respeito irrestrito às decisões técnico-científicas do Ministério da Saúde, talvez o mais competente e o mais distante dos devaneios ideológicos que reinam no atual governo.
Além disso, o SUS é uma enorme vantagem estratégica. Nosso Sistema Único de Saúde evoluiu dentro dos paradigmas de Saúde Integral (Onehealth, do Inglês), que, entre outras coisas, desenvolve ações prioritárias pautadas na prevenção. Isso ainda nos garante capacidade de oferecer diagnósticos e tratamentos que são considerados os mais inclusivos e efetivos do mundo. No entanto, existe uma preocupação: até quando isso será possível, devido à notável capacidade do governo, com participação do empresariado brasileiro, de ignorar a urgência de ações enérgicas.
Em épocas de governantes que chamam epidemias de fantasia, o tempo será o senhor do nosso destino. Tomara que essas autoridades possam entender que ciência, prevenção e saúde inclusiva não são custos, são seus maiores legados, sustentados em investimentos sólidos, constantes e muito planejamento.
Ao fim e ao cabo, a governança sem orientação científica clara e sem adequada solução para problemas ambientais pode ter criado o cenário para a origem da pandemia. Valorizar a ciência nos processos de decisão não é uma novidade e pode ajudar enormemente a superar desafios. Melhor ouvir o que diz a ciência!
Geraldo Wilson Fernandes - Professor titular de Ecologia do ICB-UFMG e docente visitante na Universidade de Sevilla, Espanha
Sérvio Pontes Ribeiro - Professor da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e docente visitante no Departamento de Parasitologia do ICB-UFMG