'Democracia não é regime natural e precisa de proteção', diz procurador-geral da União
Marcelo Almeida ministrou a conferência de abertura do seminário 'Minas contra as fake news', iniciativa da UFMG e Rede Record para debater ferramentas de combate à desinformação
As ferramentas institucionais e sociais de enfrentamento às fake news foram tema da conferência Desinformação e contemporaneidade: democracia, ciência e vida social, ministrada pelo procurador-geral da União, Marcelo Almeida, na abertura do seminário Minas contra as fake news realizada na noite desta segunda-feira, dia 12, no Conservatório UFMG. O evento, que prossegue hoje no campus Pampulha, conta ainda com painéis temáticos sobre a relação entre a desinformação, as eleições e a inteligência artificial, integrando o escopo do Programa UFMG de Formação Cidadã em Defesa da Democracia.
O procurador-geral da União iniciou a sua fala constatando que, apesar de ter sofrido um retrocesso democrático nos últimos anos, diversos indicadores mostram que o Brasil está reagindo bem a esse retrocesso. Ele explicou que os ataques sofridos explicitaram que a democracia não é um status natural e, por isso, está sempre sujeita a ameaças.
“Quem pensa que a democracia é um regime natural está errado. Se não cuidarmos dela, se não a defendermos, ela some pelas mãos de autoritários que, por incrível que pareça, assumem o poder por meio das regras eleitorais democráticas. Por isso, a democracia precisa ser jogada por todos nós, ou seja, não podemos ser meros telespectadores”, defendeu.
Almeida acrescentou que as estratégias do novo autoritarismo para atacar a democracia são graduais e sofisticadas. Entre elas, está a desinformação, que contribui para a crise da democracia ao minar a confiança que as pessoas têm nas instituições democráticas como a academia, o poder judiciário e a imprensa.
“Essa crise da democracia global que estamos vivendo é caracterizada pelo aumento do populismo, pela polarização política e pela erosão dos valores democráticos fundamentais, como a liberdade de imprensa, a independência judiciária e os direitos humanos. As instituições democráticas são corroídas de dentro para fora, então a imprensa profissional tem um papel fundamental no combate à desinformação que contribui para esse processo. Não vamos resolver nossos problemas se perdermos a batalha dos fatos".
Universidade e imprensa como defensoras da democracia
O procurador-geral da União lembrou o papel da academia e da ciência no processo de enfrentamento dos ataques à democracia, no que foi corroborado pela reitora da UFMG, Sandra Regina Goulart Almeida. A reitora destacou que a Universidade sempre defendeu a justiça, o estado democrático de direito e os direitos humanos.
“O fenômeno da desordem informativa corrói as instituições democráticas, fomenta inverdades e calúnias e descredibiliza os esforços da ciência para melhorar a vida das pessoas. Liberdade e democracia só crescem em ambientes permeados por informações confiáveis, por isso a UFMG tem tantas iniciativas contra o autoritarismo e em defesa do estado democrático.”
O presidente da RecordTV, Luiz Claudio Costa, admitiu a responsabilidade da imprensa no debate para a formulação de soluções contra a desinformação. Para ele, é necessário encontrar um caminho que passe pela educação midiática e pela regulação das mídias sociais. “Somente com a união da imprensa, da universidade e do poder judiciário conseguiremos atuar para que a internet e outros meios de comunicação sejam fontes de verdades, e não de mentiras.”
A atuação da imprensa também foi destacada pelo procurador Marcelo Almeida. Ele lembrou que os novos autoritarismos fazem uso das tecnologias, como as redes sociais e os mecanismos de busca, para espalhar desinformação. “A desinformação coordenada é usada como uma ferramenta estratégica para atacar a democracia. Por isso, a imprensa precisa ocupar esse papel de fonte confiável de informações.”
Legítima defesa
Na segunda parte de sua apresentação, o procurador-geral da União explicou que as três frentes de defesa da democracia – a academia, a imprensa e o poder judiciário – devem caminhar juntas em um processo que o procurador chamou de “democracia defensiva”.
“Trata-se de ter um sistema que permita a legítima defesa da democracia. Já temos experiência de resistência e inovação democrática, mas os sistemas constitucionais precisam prever situações de legítima defesa da democracia para evitar que ela seja ameaçada por novos grupos autoritários”, disse.
O procurador detalhou que a Constituição de 1988 é a principal cidadela jurídica desse sistema de defesa, que é formado ainda por leis, como o Código Penal e a Lei de Acesso à Informação, e decretos, resoluções e portarias. Tais elementos, acrescenta Almeida, devem ser usados para combater a desinformação por meio de quatro fenômenos diferentes: a democracia militante, a incorporação, a expurgação e a educação.
“A democracia militante trata da coibição de atores não democráticos por meio do estado de direito. Um exemplo se deu por meio da criação da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia (PNDD), que é uma estrutura especializada para atuar contra os ataques à democracia. Começamos a trabalhar após os ataques de 8 de janeiro e, de lá para cá, já foram protocolados 110 requerimentos de atuação do órgão”, contou.
A incorporação é a atuação para enfraquecer o campo extremista dentro do parlamento por meio da ação política, ocorrendo quando partidos democráticos fazem coalizões para evitar o autoritarismo. A expurgação envolve as ações que garantem a prevalência dos princípios democráticos dentro da burocracia, afastando agentes públicos que ajam contra o regime democrático.
A educação trata do letramento midiático, ou seja, “da formação de cidadãos com capacidade crítica para entender e defender a democracia e o consenso democrático no pós-guerra. Chegamos ao consenso de que não existe outro regime para reger a sociedade, senão a democracia liberal. Mas como a democracia tem inimigos, temos a obrigação de usar essas quatro ferramentas que existem dentro do estado de direito para evitar a ascensão do autoritarismo".
Após a conferência do procurador-geral da União, houve o lançamento do livro Desinformação e contemporaneidade – democracia, ciência e vida social, organizado pelos professores da UFMG Carlos Alberto Ávila Araújo, da Escola de Ciência da Informação (ECI), Fábia Lima e Geane Alzamora, ambas do Departamento de Comunicação Social da Fafich.