‘É pelo contato com a arte que aprendemos a ser livres’, diz Vladimir Safatle
Portal UFMG entrevistou o professor da USP, que é filósofo, psicanalista e músico; hoje, no Conservatório, ele lança livro e interpreta no piano peças de sua autoria
O filósofo e professor da USP Vladimir Safatle lança, nesta sexta-feira, no Conservatório UFMG, seu livro mais recente, Em um com o impulso: experiência estética e emancipação social. Ele também vai interpretar, ao piano, ao lado da cantora Fabiana Lian, músicas de sua autoria.
A propósito das discussões propostas na obra, ele comenta, nesta entrevista ao Portal UFMG, que a experiência estética é “elemento fundamental para a organização de nossas expectativas de liberdade”. Isso significa, segundo o filósofo, que “é pelo contato com a obra de arte que nós aprendemos a ser livres”. Ele distingue a experiência estética da autonomia moral e diz que a obra de arte “permite integrar aquilo que estremece a nossa dimensão sensível”.
Na conversa, Safatle, que também é psicanalista, fala ainda sobre neoliberalismo e sofrimento psíquico, refundação da esquerda e os movimentos da extrema direita no Brasil, entre outros assuntos.
No livro que será lançado na UFMG, como você trata a relação entre a produção artística e as expectativas de emancipação social? Fale também da tríade que a obra inaugura.
A experiência estética, a meu ver, é um modelo fundamental de organização de nossas expectativas de liberdade. Ou seja, é por meio do contato com a obra de arte que nós aprendemos a ser livres, tratando aqui do que a liberdade efetivamente significa, ou o que ela pode significar. Nesse primeiro livro, tento mostrar isso, seguindo as discussões sobre autonomia estética, expressão e conceito de sublime. No interior dessas discussões, três elementos fundamentais para a ideia de liberdade se constituíram. Primeiro, ser livre é ser capaz de suspender o tempo, aquele tempo marcado pelas tradições, hábitos e costumes, para que outra criação possa se dar no interior do tempo. As obras de arte produzem uma ruptura com o presente. Em segundo lugar, ser livre é poder agir para além da estrutura da nossa individualidade, poder ter uma multiplicidade de vozes no interior da nossa voz. Procuro mostrar como isso aparece no interior da forma musical, no século 19. Por fim, ser livre é não ter medo de se implicar com a autoridade. O projeto vai se desdobrar: no segundo livro, pretendo tratar de como se constrói um povo no Modernismo, no caso brasileiro. O último volume vai dar conta da produção contemporânea.
Como a forma musical pode constituir um caminho para uma noção de autonomia distante da autonomia moral? E como se pode pensar a liberdade fora da abordagem da lei?
A autonomia é um dos valores fundamentais para se definir a ideia de emancipação. Mostro como, na verdade, temos vários modelos de autonomia. Uma análise mais depurada da experiência estética mostra um modelo muito diferente do modelo hegemônico, que é a autonomia moral, baseada em dar a si mesmo a sua própria lei, a autolegislação. Nas obras de arte aparece outra coisa, a experiência estética permite integrar aquilo que estremece a nossa dimensão sensível, a estrutura do nosso mundo sensível. A gente vê isso na música: a autonomia musical aparece a partir do momento em que a dissonância é integrada no interior do sistema. Esse é um elemento importante, porque será possível compor com dissonâncias. A gente pode imaginar o que isso pode significar também numa visão mais larga, de relações sociais.
Explique, por favor, a situação que tem motivado você e outros autores a tratar do neoliberalismo como “gestor do sofrimento psíquico”.
No livro que coorganizei [‘Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico’, da Editora Autêntica, finalista do Prêmio Jabuti 2022] e que resultou de trabalho coletivo no Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise, partimos do princípio de que os valores que operam na clínica não são apenas os clínicos. São valores que vêm da cultura, da política, da economia, da estética. Por exemplo, equilíbrio é um valor estético. Controle (e autocontrole) também não é um valor clínico, é um valor político. Partindo disso, a gente se perguntou como os princípios de racionalidade econômica intervêm na nossa noção de normalidade hoje. A racionalidade econômica vigente, que é o neoliberalismo, vai, à sua maneira, organizar um sistema de expectativas subjetivas que definem muito claramente uma nova configuração de nossa gramática de sofrimento, de como a gente sofre.
Em artigo publicado logo após os ataques de 8 de Janeiro, em Brasília, você afirma que é preciso reconhecer que há uma “insurreição fascista em etapas”. Pode explicar sua ideia de “decompor a estrutura de poder” que se apoia em chantagem contínua?
Acredito que o Brasil passa por um processo insurrecional de extrema direita, esse é o lado dramático da história brasileira, hoje. Há um setor da sociedade muito claramente identificado com um processo de transformação estrutural do Brasil, uma transformação fascista. Claro que existem atores sociais que apoiam de maneira mais explícita esse projeto, as Forças Armadas são um deles. Então, quando eu falo de decomposição da estrutura de poder, refiro-me a uma tentativa desses grupos de pôr em questão que estruturas institucionais devem ser respeitadas no país. Esse tópico da resistência contra a estrutura institucional não era da extrema direita, era um tópico da esquerda. A gente entendia que essas estruturas tinham sua gênese em processos de opressão, de preservação de desigualdades, de coisas dessa natureza. Esse discurso, com outro sistema de justificativas, migrou para a extrema direita.
Após um mês do conflito entre Rússia e Ucrânia, você defendia que os esforços deveriam ser pelo fim da guerra, não para alimentá-la, por exemplo, com o envio de armas e outros equipamentos. A guerra acaba de completar um ano. O que você pensa hoje sobre esse tema?
Minha posição é muito parecida com a do governo brasileiro atual. Não faz nenhum sentido sustentar essa guerra por mais tempo, as consequências são dramáticas. Um quarto dos ucranianos está na condição de refugiado, o país está completamente destruído, completamente desgastado. De um lado está o imperialismo russo, de outro a incapacidade do imperialismo transatlântico – europeu e norte-americano – de impedir o pior. A única preocupação sensata é saber como parar a guerra o mais rapidamente possível, e a posição brasileira de não fornecer armamento é absolutamente sustentável, defensável, racional e responsável.
Chama a atenção também sua ideia de que o Ocidente “depende” da existência de países autoritários, que, por exemplo, abastecem a Europa e outras regiões com bens produzidos por trabalhadores que muitas vezes não têm seus direitos básicos respeitados. Pode explicar?
Essa ideia diz respeito, de certa forma, à maneira como eu leio a guerra na Ucrânia. O capitalismo mundial depende de países que se sustentam em uma larga intervenção extrativista na sua natureza, e esse extrativismo ocorre principalmente em países de cunho autoritário. O Brasil é um caso exemplar, considerando suas relações sociais, a Rússia é outro caso, e esses países não estão desconectados do capitalismo global, são absolutamente centrais para o capitalismo global. Eu dou um exemplo: os governos europeus fizeram pressão sobre o governo Bolsonaro por causa da questão da devastação da Amazônia, que é consequência direta da opção de agronegócio que o Brasil fez. Só que, no que diz respeito aos pesticidas, o Brasil depende de empresas europeias como a Bayer, que vende para nós pesticidas que não comercializa na Europa por causa das leis europeias. Muitos grupos ativistas ecológicos insistiram com a empresa para que ela simplesmente respeitasse as leis europeias na hora de exportar seus produtos. E a Bayer disse que não faria isso, que respeita as leis locais. Esse é um exemplo de hipocrisia clássica do sistema econômico e político europeu, que mostra o tipo de relação que existe hoje no campo da produção global.
À luz do resultado da eleição de 2022 e do 8 de Janeiro, como se atualizaria sua convicção de que é preciso refundar a esquerda no Brasil?
Mantenho minha opinião. A política mundial foi para os extremos, e o problema é que só existe um extremo hoje, que é a extrema direita. É necessário que haja pelo menos dois extremos para que eles possam, de certa forma, reordenar a balança das lutas políticas. Enquanto há só um, é ele que puxa todo o resto. É isso que está acontecendo, e já faz pelo menos uns dez anos. No caso brasileiro, é ainda mais dramático, porque cada vez mais o xadrez da esquerda vai para o centro. E a gente limita cada vez mais nosso horizonte de expectativas e nosso horizonte de demandas. E cada vez mais a gente acha que ganha alguma coisa, mas estamos continuamente perdendo nossa capacidade de intervenção e de transformação.
Você tem pensado e escrito sobre o tema do estado de exceção no Brasil, que, como defendem muitos pesquisadores, garantiria privilégios para o grande capital (como no caso dos eventos de 2014 e 2016) e impõe condições indignas a parcelas periféricas da população?
Uma maneira de discutir esse assunto é dizendo mais ou menos o seguinte: a função do Estado brasileiro é gerenciar uma guerra civil não declarada. E ele gerencia isso com graus absolutamente inauditos de violência. Conhecemos os números da violência policial, a maneira como as populações desfavorecidas no Brasil são, continuamente, objetos de um tipo de poder de decisão de vida e de morte. Não há qualquer tipo de garantia institucional de integridade física. A experiência brasileira, vinda da experiência colonial, está fundamentada em um estado de exceção contínuo para setores da população. Essa é a questão fundamental. Alguns setores mais privilegiados podem ter algo parecido com a experiência da democracia, mas a grande maioria sequer está interessada no que uma palavra como essa pode significar.
Como é sua atividade na música e o que você vai apresentar no Conservatório UFMG?
Eu sou também compositor, fiz dois CDs [Músicas de superfície, de 2019, e Tempo tátil, de 2021]. É uma atividade que desenvolvo há muito tempo, mas, por causa do meu trabalho como professor de filosofia, ficou secundarizada. Estou retomando. O que trago para Belo Horizonte é o repertório do primeiro álbum, mais baseado em piano e voz. O outro seria difícil porque envolve vários músicos.
Debate e concerto
O evento de lançamento (sexta, 3 de março, às 19h30, no Conservatório UFMG) do livro Em um com o impulso: experiência estética e emancipação social, de Vladimir Safatle, terá participação do professor Rodrigo Duarte, do Departamento de Filosofia da Fafich, e do filósofo Ricardo Nachmanowicz, egresso da pós-graduação da UFMG. Eles vão debater Formas de pensar a relação entre arte e política.
A noite será encerrada com o concerto Música de superfície, em que Safatle interpreta, com a cantora Fabiana Lian, peças de autoria de ambos. O Conservatório fica na Avenida Afonso Pena, 1.534, Centro de BH. A entrada é gratuita.