[Opinião] Vacinas privadas na crise: ciência e ética
Professor da Faculdade de Direito defende que os imunizantes, bens essenciais escassos, devem ser oferecidos segundo critérios de prioridade de distribuição e acesso
A lei 14.125 de 2021 trata de alguns temas ligados à vacinação contra a covid-19, regulando, por exemplo, a compra de imunizantes pelo setor privado. Seu artigo 2º prevê a possibilidade de empresas adquirirem vacinas, desde que atendidas duas condições: a primeira é que todas as vacinas adquiridas durante a fase de imunização prioritária devem ser doadas ao SUS; a segunda, que após esse período, metade das vacinas importadas deve ser doada ao SUS. Infelizmente, essa lei já foi descumprida em Minas Gerais, onde grupos privados deram início à imunização de empresários e seus parentes, e já há decisão de primeira instância da Justiça Federal do Distrito Federal que afirma a inconstitucionalidade das exigências.
Estou convencido da constitucionalidade da lei, mas quero abordar a questão aqui do ponto de vista da ética. Certamente há argumentos para se defender a compra de imunizantes por empresas privadas. Afinal, empresas de grande porte mantêm serviços médicos e até imunização para aqueles que nelas trabalham. Que diferença haveria entre fornecer antibióticos ou vacinas contra a covid-19? Além disso, se várias vacinas que não integram o Programa Nacional de Imunização (PNI) podem ser compradas por quem tem recursos para tanto, por que a vacina de covid-19 não poderia?
Há uma diferença entre a aquisição de vacinas e antibióticos. Apesar de serem igualmente mortais, doenças que requerem antibióticos afetam poucas pessoas na população mundial, muitas delas não são transmissíveis pelo simples contato entre pessoas, e a indústria farmacêutica consegue suprir a necessidade global dos medicamentos para tratá-las. Com a vacina para a covid-19 não é assim. A produção mundial não conseguirá atender à demanda global nos próximos dois anos, porque os insumos são escassos.
A riqueza parece ser um critério adequado para distribuir bens escassos não essenciais, como assentos na primeira classe de voos internacionais, mas, quando se trata de um bem essencial escasso, não deveríamos permitir que a riqueza de alguém seja o critério para determinar se ela terá ou não parte daquele bem, pelo menos em um Estado de Direito.
Podemos dividir os bens materiais em dois grupos. O primeiro é dos abundantes – a comercialização deles não impede sua distribuição a parcelas da sociedade que não podem competir com aqueles que possuem mais recursos para adquiri-los; o segundo é daqueles que são escassos – sua aquisição por alguns impede a aquisição ou fruição por outros. As vacinas estão nesse segundo grupo, e aquelas que são comercializadas apenas se aproveitam do fato de não estarem previstas em políticas públicas de imunização por uma decisão sobre como empregar os recursos do orçamento público, também escassos. A permissão para que certa vacina seja adquirida por quem tem dinheiro pressupõe dois princípios. O primeiro, que poderíamos chamar de princípio humanitário, afirma que não devemos recusar profilaxia ou tratamento menos danosos que o mal potencialmente enfrentado, quando estiverem disponíveis a quem puder e quiser usá-los; o segundo, que poderíamos chamar de princípio da universalidade, indica que a utilização desses meios não deve impedir seu eventual fornecimento gratuito a todos. E, quando o bem é escasso, é preciso fixar critérios de distribuição e acesso ao bem.
A riqueza parece ser um critério adequado para distribuir bens escassos não essenciais, como assentos na primeira classe de voos internacionais, mas, quando se trata de um bem essencial escasso, não deveríamos permitir que a riqueza de alguém seja o critério para determinar se ela terá ou não parte daquele bem, pelo menos em um Estado de Direito. Um bem essencial é aquele cuja falta interfere negativamente, de maneira significativa, na vida de qualquer ser humano (ao contrário dos assentos na primeira classe, que não são necessários para o bem-estar da maioria dos seres humanos) e que, por isso, não deve ter como critério de distribuição a riqueza, o que implicaria pré-selecionar quem teria acesso a ele com base em algo externo ao próprio bem almejado (no caso das vacinas, a saúde, a que todos constitucionalmente têm direito, independentemente de suas condições econômicas). Se a riqueza representasse um critério legítimo para definir quem receberia determinado bem essencial escasso, como a vacina, então ser mais rico significaria ter mais direito a ela, e é difícil crer que Bill Gates tenha mais direito à vacina que um médico. É o fato de ser um bem essencial escasso que indica que somente um programa público de vacinação é compatível com a atual crise de saúde pública.
Poderia se argumentar que quem pudesse pagar por elas seria mesmo eventualmente imunizado pelo poder público, mas o que fere nossa intuição moral não é o fato de tais pessoas serem imunizadas, mas quando elas o foram, tendo-se em vista a escassez de vacinas. Devemos então avaliar os critérios pelos quais determinados grupos, como profissionais da saúde e idosos com mais de 75 anos, integram grupos prioritários na vacinação.
A maioria dos pacientes internados nas UTIs de covid-19 pertence aos primeiros grupos prioritários da vacinação. Sua imunização representará um grande alívio para o sistema de saúde, dado mensurável empiricamente, que, por sua vez, implicará a melhora da capacidade de atender aos enfermos.
Ainda que nós, como sujeitos morais, estabeleçamos limites éticos ao uso e aos métodos da ciência, a ciência mesma não se pauta por critérios éticos. A ética chega à ciência como uma limitação originada fora dela, e não dentro da própria ciência, porque sua lógica é a causalidade eficiente que exclui toda valoração de fins, essencial para a ética. Ainda que os membros de um comitê científico possam elencar razões éticas para estabelecer uma ordem de prioridade, o que importa para a ciência são as consequências causais de determinada opção, empíricas, mensuráveis, perceptíveis pelos sentidos. Se fosse causalmente irrelevante que velhos ou jovens fossem imunizados primeiro, não poderíamos alegar nenhum critério científico para determinar uma ordem de prioridade. Os critérios só poderiam ser éticos, e não caberia aos cientistas defini-los, mas aos sujeitos morais e aos cidadãos.
No entanto, existem consequências causais empíricas para se estabelecer uma ordem de prioridade no caso. A maioria dos pacientes internados nas UTIs de covid-19 pertence aos primeiros grupos prioritários da vacinação. Sua imunização representará um grande alívio para o sistema de saúde, dado mensurável empiricamente, que, por sua vez, implicará a melhora da capacidade de atender aos enfermos. Além disso, para além da questão ética (que pode ser assim expressa: seria legítimo exigir que aqueles que combatem a pandemia na linha de frente não recebessem alguma proteção adicional antes dos demais?), existe uma questão empiricamente perceptível no caso de profissionais de saúde: eles podem funcionar como veículo de transmissão do vírus, e, por isso, imunizá-los ajuda a interromper a cadeia de contágio.
Apesar de o motivo pelo qual um grupo é indicado como prioritário poder se explicar por uma estrita causalidade mecânica, há uma consequência ética que ocorre não na escolha, mas da escolha, e que tem a ver com a relação entre ética e política, mais do que entre ética e ciência: a discussão dos fins que uma sociedade civilizada deve perseguir na promoção do bem-estar de seus membros. Estaremos mal nesse quesito, se defendermos, seja como for, a inexistência de uma ordem de prioridade.
*Versão ampliada deste texto, intitulada Vacinas privadas em uma crise de saúde pública?, foi publicada no blog de Fausto Macedo, no portal do jornal O Estado de São Paulo, em 12/02/2021