'Relação entre informação e imaginário é umbilical', afirma pesquisador português
Armando Malheiro, da Universidade do Porto, faz conferência na UFMG, na próxima terça-feira
As implicações éticas que envolvem a relação do homem com a tecnologia constituem um dos campos de investigação do historiador e cientista da informação Armando Malheiro, da Universidade do Porto. Na próxima terça-feira, dia 11, ele fará a conferência O fyborg e a ética da informação: os limites de uma ética antropocêntrica, no âmbito do Programa Cátedras, do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (Ieat).
Malheiro é colaborador do Gabinete de Estudos da Informação e do Imaginário (GEDII), grupo de pesquisa que se vale do conceito de imaginário como objeto de aplicação de uma hermenêutica para compreender os comportamentos informacionais das pessoas. Em entrevista por e-mail ao Portal UFMG, o professor aborda as correntes que divergem sobre as éticas que devem regular o comportamento humano na era da informação, a relação entre imaginário e informação, também objeto de suas investigações, e o fenômeno das fake news, que ele vê como um processo de "descredibilização da verdade".
A sua conferência vai abordar a ideia, proposta por Alexander Chislenko, segundo a qual o homem se transformou em um “fyborg”, espécie de “cyborg funcional”, que tem a tecnologia como extensão de si próprio. Talvez estejamos nos aproximando da era do pós-humano, mas as relações humanas ainda são reguladas por uma ética assentada em bases anteriores. Como “atualizar" essa ética e “adaptá-la” a esse “admirável mundo novo”?
A pergunta é interessante e pertinente, mas complexa e hoje alimenta artigos, capítulos de livros e obras completas dedicados ao tema. Há, entre outros, dois autores que desenham duas éticas da informação que se confrontam: Rafael Capurro, nascido uruguaio, mas cientista da informação e filósofo residente na Alemanha, e Luciano Floridi, italiano, filósofo e docente em Oxford. Para Capurro, a ética regula e continuará a regular o comportamento moral dos humanos na era da informação. Para Floridi, a ética terá de abranger os “agentes inteligentes”, espécie de “cyborg” que poderá constituir o “pós-humano”. As duas posições não são conciliáveis e projetam uma visão para o futuro que é sempre arriscada. Entre elas, vale a pena situar outro contributo, o do professor António Damásio, neurocientista [português] a trabalhar e a residir há muito nos EUA, para quem a consciência é um atributo biológico, impossível de ser replicada na tecnologia digital. Eu inclino-me para a conjugação da reflexão de Capurro com a pesquisa prospetiva de Damásio. Em reforço do que afirmo, recorro ao livro A revolução do algoritmo mestre (2017), do português a trabalhar academicamente nos EUA, Pedro Domingos – sobre ele escrevi uma recensão que sairá no próximo número da revista eletrônica Prisma.Com. Seu trabalho desdramatiza o risco da singularidade, ou seja, de uma alteração singular que faça surgir uma nova “espécie”, mas alerta que tudo depende de nossa vontade – não devemos brincar com “fogo” porque podemo-nos queimar.
A princípio, a sociedade da informação, por ser calcada em dados e conhecimento pretensamente objetivos, relegaria a dimensão do imaginário e da magia a um passado já remoto. No entanto, a "sociedade do imaginário" parece coexistir com a sociedade da informação. O fenômeno das fake news, que não é novo (o boato, por exemplo, é uma instituição milenar), mas ganhou amplitude e escala global com os novos dispositivos eletrônicos e midiáticos, não seria uma manifestação colateral dessa coexistência?
Não sei se as fake news, boato ou fofoca traduzem exatamente essa coexistência do imaginário com a informação. O que me parece mais óbvio é que a relação do imaginário com a informação é umbilical, desde o momento em que as imagens arquetípicas tornam-se representações mentais e emocionais codificadas. Se a informação/conhecimento não tivesse esse componente cognitivo e emocional – e até inconsciente – não haveria relação entre um tópico e o outro, mas, na verdade, há e é forte. Parece-me também que o imaginário, além de infiltrar-se na informação de qualquer tipo, aparece hoje nos videojogos, que são um negócio multimilionário e um poderoso instrumento infocomunicacional de modelação cognitiva. Já o problema das fake news tem, no meu entendimento, muito diretamente a ver com o relativismo muito propalado, ou seja, a descredibilização da verdade como valor a preservar nos processos de produção de informação/conhecimento. Quando se crê que cada pessoa tem a sua verdade, daí à legitimação para se fabricar e propalar um boato vai um passo curto. Sabemos que é uma quimera a verdade absoluta e universal, mas também sabemos que a ciência busca a verdade possível, e esta não se compagina com manipulações ou mistificações dos fatos.
A falta de conhecimento e informação sempre foi considerada obstáculo ao progresso e à evolução das sociedades. No século 21, porém, a informação é mercadoria abundante a ponto de o filósofo polonês Zygmunt Bauman afirmar que o problema hoje está mais no excesso do que na falta de informação. Como o senhor analisa esse paradoxo?
Não estabeleço uma distinção de raiz cognitiva entre informação e conhecimento, porque ambas procedem da mesma fonte – o cérebro e a mente humanas. O que há é uma tipologia ampla da informação que vai da mais simples à mais complexa e elaborada – e a que se situa no topo de uma vasta escala é o conhecimento. O que se está a passar é que há muita informação simples, rasteira, unissêmica, como a imagética e icônica, e cada vez menos informação complexificada, sólida e com novidades robustas a que se dá o qualificativo de conhecimento. Mas o fenômeno não é novo. Sempre houve mais “cultura popular” que “cultura erudita”, para usar expressões típicas da Modernidade, e essa assimetria tem consequências graves que hoje estão mais exponenciadas e causam um impacto devastador.
Fenômenos informacionais como fake news e desordens informativas representam mesmo um risco para a democracia e suas instituições? Que vacinas devemos adotar para combatê-los?
Sim, as fake news e boatos são perniciosos para a democracia porque desestabilizam e podem gerar convulsões em massa das populações e comunidades. Todos temos uma responsabilidade cívica no controle de tais disfunções, mas é óbvio que a comunicação social joga um papel decisivo: buscar as melhores fontes e fazer sempre um rigoroso confronto para despistar equívocos e falsificações.