Retomada democrática traz esperança para a educação, afirmam Nilma Lino e Rodrigo Ednilson
Em evento da série 'Futuro, essa palavra', professores da FaE falaram sobre o papel da política de cotas na transformação das universidades públicas
Os professores da UFMG Nilma Lino Gomes e Rodrigo Ednilson falaram, na manhã desta quinta-feira, 10, sobre os desafios para a construção e consolidação de uma universidade cada vez mais inclusiva e afirmativa, com foco nas políticas de cotas étnico-raciais. A atividade integrou a série Futuro, essa palavra, que comemora os 95 anos da UFMG, e marcou a abertura do Novembro negro na Universidade.
No início da atividade, a atriz, cantora e instrumentista Julia Tizumba, aluna do doutorado em Artes Cênicas na UFMG, apresentou uma performance musical. Entre as canções apresentadas, Julia, que é filha do ator, compositor e multi-instrumentista Maurício Tizumba – agraciado no mês passado, pela Universidade, com o título de Doutor por Notório Saber –, contou que seu ingresso, na pós-graduação, se deu justamente por meio das cotas raciais e lamentou a presença ainda incipiente de pessoas pretas e pardas nos espaços de ensino formal.
“Eu olho pra gente aqui e ainda vejo poucos de nós. E isso é muito estranho. Se nós somos a maioria da população, considerando pessoas pretas e pardas, nunca faz sentido ter pouca gente de nós em nenhum lugar. Mas eu sou otimista, ainda mais agora, com o cenário melhorando, eu acho que vai melhorar e, por isso, promovemos eventos como esse, que fortalecem a nossa presença. Hoje eu venho somar com vocês aqui, trazendo o meu tambor”, afirmou a multiartista.
Na sequência, a reitora Sandra Regina Goulart Almeida destacou a importância de discutir uma universidade afirmativa, no contexto das comemorações dos 95 anos da instituição. “Temos ainda um longo caminho pela frente, e eu gosto de citar uma fala de Martin Luther King, segundo a qual 'nós não estamos mais onde estávamos, mas ainda não estamos onde desejamos estar'. Nós caminhamos muito no sentido de enfrentar o racismo estrutural das nossas sociedades, mas ainda temos um longo caminho pela frente”, destacou.
A reitora lembrou ainda que os acontecimentos dos últimos anos ajudaram a enxergar que o Brasil é marcado por diversos preconceitos. “Como universidade, não podemos deixar que uma parcela da nossa sociedade, que é machista, misógina, sexista e racista, represente a nossa instituição e o nosso país. Temos que seguir trabalhando por um país melhor, mais equânime, mais justo, com menos desigualdades e, sobretudo, um país que respeita as pessoas: que não seja racista, machista, sexista, xenófobo. Pensar no futuro da nossa instituição é pensar no futuro do nosso país”, defendeu.
Educação democrática
Vinculada à Faculdade de Educação (FaE), a professora emérita da UFMG Nilma Lino Gomes destacou o caráter emancipatório das ações afirmativas, ao tirar da invisibilidade grupos que até então estavam ausentes ou pouco presentes nos espaços de educação formal. Primeira mulher negra a comandar uma universidade pública federal – em 2013, foi nomeada reitora pró-tempore da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab) –, Nilma reforçou o papel das universidades como espaço formativo e educativo, essenciais para a democracia.
“Nesse processo, nós temos convivido com uma característica forte com a qual temos aprendido a lidar, que é a de pensar uma educação que não só respeite, mas que reconheça a diversidade. Antes do respeito, é preciso reconhecer que a diversidade existe e também a sua importância”, defendeu.
Nilma Gomes ressaltou que vivemos um “momento ímpar” no Brasil: o início de um processo de reconstrução da democracia. “O resultado dessas eleições, com a retomada de um governo democrático, fruto de uma ampla aliança política, trouxe ânimo novo para as pessoas que lutam por um Brasil com desenvolvimento sustentável e justo. Estamos esperançosos de que retomaremos princípios caros para a nossa sociedade, como democracia, igualdade, justiça social, equidade, não discriminação, não violência, que integram esse projeto democrático que tem eixos específicos, como a educação”, afirmou.
Nesse sentido, para Nilma Lino Gomes, que foi ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e também da pasta das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, no governo de Dilma Rousseff, a “retomada do caminho democrático no Brasil, com a reconstrução de um governo democrático, significa a salvaguarda de um leque de experiências, políticas e propostas de combate a desigualdades, via diferentes modelos de políticas afirmativas, que têm como exemplo de sucesso as cotas étnico-raciais e sociais de ingresso ao ensino superior".
Não por acaso, segundo a professora emérita, as cotas étnico-raciais e sociais são um dos aspectos mais atacados por “aqueles que são contra a democracia”. “E isso ocorre justamente porque a educação permaneceu dando frutos, mesmo nesse contexto de ascensão da extrema direita. Os resultados continuaram aparecendo e dizem respeito a essa maior inserção de coletivos diversos, como negros, indígenas, estudantes advindos de escolas públicas, de baixa renda, pessoas com deficiência, nas nossas instituições de ensino superior, especialmente as públicas”, destacou.
Por fim, Nilma Lino Gomes lembrou que as ações afirmativas também trazem responsabilidades para as universidades, exigindo que elas se adaptem a essa nova realidade, marcada pela presença ativa desses novos sujeitos. “Uma dessas responsabilidades é olhar para as nossas práticas: as nossas normas estão hoje em sintonia com essa diversidade de sujeitos que recebemos? Mais do que pensar em questões como a assistência estudantil, nossas questões de apoio psicológico e pedagógico são adequadas? É preciso reconhecer que esses sujeitos são muito mais que pobres ou pessoas de baixa renda: são sujeitos que vêm com toda a potência e questionam nossos currículos, nossas pesquisas, as categorias analíticas e as bibliografias que sempre utilizamos, e demonstram nossa ignorância em determinados temas, que jamais havíamos pensado”, pontua.
Mudanças concretas e desafios
Também docente da FaE, Rodrigo Ednilson, que ocupou o cargo de pró-reitor adjunto de Assuntos Estudantis da UFMG, tem estado à frente dos processos de discussão e implementação dos procedimentos de heteroidentificação na UFMG. No início de sua exposição, Ednilson fez coro com a abordagem de Nilma Lino Gomes, ao destacar a retomada da democracia e afirmar que “este é um ano em que a gente recria a esperança".
Ao narrar brevemente a própria trajetória como estudante, por mais de 20 anos, na UFMG, o professor, que completa, em 2022, dez anos de docência na Universidade, falou sobre o papel da professora emérita, com quem dividiu a mesa, em sua formação. “Nilma foi um farol para minha trajetória acadêmica. Com ela, aprendi o significado do que é um compromisso coletivo e da importância de pesquisas em rede, com atenção à dimensão politica”, disse.
Ednilson, que não ingressou na universidade por meio de política de cotas, explicou que ainda assim se considera um produto das ações afirmativas na UFMG. O docente integrou a primeira turma de fortalecimento de trajetória de estudantes negros do projeto Ação Afirmativa. "Eu me 'tornei' negro aos 20 e poucos anos, dentro da FaE. Não que eu não tivesse acúmulo de melanina, mas o processo de me tornar negro só se deu quando eu percebi que estava, a partir daquele momento, vivendo no mundo dos brancos e que teria que agir nesse mundo”, afirmou.
No ano passado, o professor foi convidado a compor uma equipe, coordenada pela UFRJ, que se dedicou a investigar os efeitos de uma década da lei de cotas. Ednilson entrevistou diversos gestores, docentes e discentes da UFMG, para entender o impacto das políticas afirmativas na instituição. Em sua fala nesta manhã, ele apresentou alguns trechos das considerações finais dessa pesquisa.
Resgatando fala da filósofa Sueli Carneiro, em audiência pública realizada em 2010, no STF, para debater a legalidade das cotas étnico-raciais em instituições públicas de ensino superior, Ednilson lembrou que, naquele momento, já havia “duas representações distintas do país e dois projetos de nação, cada qual vinculado a alternativas políticas”, que, em 2022, ainda estão em disputa. “É importante destacar que argumentos contra a política de cotas não são mais os mesmos, mas ainda assim podemos perceber um movimento de resistência à política de inserção racial nas universidades”, afirmou, com base nas respostas encontradas no processo recente de investigação.
Os argumentos fortes em 2010, como a possível queda de qualidade do ensino e o acirramento de conflitos sociais, deram espaço, segundo Ednilson, à predominância de “uma concepção política cega às diferenças''. “Ao mesmo tempo em que o corpo discente se transforma, tornando-se mais diverso, alguns setores da instituição seguem não percebendo que o não reconhecimento da diferença se configura como um ritual pedagógico que atua a favor do racismo”, analisou.
Ainda segundo o professor, as conversas com a comunidade discente, no entanto, reforçam que “esses coletivos vêm reeducando a universidade, em sua maneira de acolher, reconhecer e respeitar as diferenças”. Para Ednilson, a presença desses estudantes, que ampliam a diversidade no ambiente acadêmico, dá “concretude à palavra universidade”. “Com essa modificação, esta instituição se torna de fato um universo de possibilidades, o que antes não se podia dizer a respeito da Universidade”, pontuou.
‘Futuro, essa palavra’
Atividade de destaque na programação que comemora o aniversário de 95 anos da UFMG e o bicentenário da Independência do Brasil, o ciclo de conferências Futuro, essa palavra é realizado desde junho deste ano, quando o auditório da Reitoria recebeu os líderes indígenas Ailton Krenak e Davi Kopenawa Yanomami.
Em 22 de agosto, a professora emérita Ana Lúcia Almeida Gazzola, reitora da UFMG na gestão 2002-2006, ministrou conferência de recepção aos calouros, com o tema 95 anos da UFMG: passado, presente e o futuro que queremos. Na mesma data, no período noturno, Heloísa Starling, docente do Departamento de História da UFMG e coordenadora do Projeto República, também falou sobre o tema.
Ainda em agosto, Frei Betto ministrou a conferência A luta pela democracia – na ocasião, ele assinou acordo de cessão de seu patrimônio intelectual para a UFMG. No fim de setembro, o ciclo sediou conferência sobre a monkeypox, com os professores da UFMG Unaí Tupinambás, da Faculdade de Medicina, Erna Geessien Kroon e Flávio Guimarães da Fonseca, vinculados ao Instituto de Ciências Biológicas e integrantes da Câmara Técnica Temporária Pox-MCTI.
No início de outubro, a série recebeu a ministra do STF Cármen Lúcia, que falou sobre o tema O futuro do país e as instituições democráticas. Na segunda quinzena do mês, foi a vez de a presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Helena Nader, participar da série, com conferência de abertura da 31ª Semana do Conhecimento da UFMG. Todas as conferências podem ser assistidas em lista especial disponível no canal da UFMG no YouTube.