Trocando de dívidas: um olhar crítico sobre o crédito consignado no Brasil
Série especial da UFMG Educativa problematiza os consignados e a relação entre saúde mental e financeira

Em um contexto de baixos salários, aumento do custo de vida e escassa educação financeira, o crédito consignado desponta como solução — e armadilha — para milhões de brasileiros. Desde o lançamento do Programa Crédito do Trabalhador, que permite o desconto em folha para empregados com carteira assinada, o debate sobre os riscos e impactos dessa modalidade de empréstimo ganhou força.
O que antes era um privilégio de servidores e aposentados passou a ser acessível a um público ainda mais vulnerável. Em pouco mais de um mês, de acordo com o governo federal, a nova modalidade movimentou mais de R$ 80 bilhões. O montante representa 64% da meta da Federação Brasileira de Bancos para todo o ano. Mas a promessa de alívio financeiro para quem faz um empréstimo consignado, esconde uma espiral de endividamento silencioso e crescente.
Da solução à armadilha: os relatos de quem vive o endividamento
Para muitos, o crédito consignado é a última saída. Uma administradora com carteira assinada, cuja identidade foi preservada, relatou que contraiu o primeiro empréstimo para pagar o cartão de crédito. No início, a solução funcionou, mas logo outras dívidas surgiram. “Não foi o empréstimo consignado que me salvou. O comportamento não mudou”, contou. Hoje, em tratamento psicológico desde 2021, ela reconhece que o descontrole financeiro estava ligado a questões emocionais.
Um servidor público, também sob anonimato, compartilhou um drama similar: pegou R$ 10 mil em préstimo para ajudar a ex-esposa a reabrir um negócio. A dívida virou uma bola de neve e hoje ele deve mais de R$ 120 mil. "É muito difícil. A saúde mental da gente vai embora junto", desabafou.
Enquanto isso, aposentados sofrem com descontos mensais automáticos que reduzem drasticamente seu poder de compra. A aposentada e ex-bancária Regina Lúcia Freitas, de 74 anos, disse nunca ter usado essa modalidade por considerá-la desvantajosa. “Juros de mais de 1,5% ao mês é um absurdo. Matematicamente não fecha”, criticou.
Um ciclo vicioso alimentado por vulnerabilidades
A psicanalista, professora, doutora em Psicologia Econômica e presidenta da Associação Internacional para a Pesquisa em Psicologia Econômica (IAREP), Vera Rita de Melo Ferreira, alerta para a conexão direta entre saúde financeira e saúde mental. Ela explica que o endividamento constante causa um "túnel da escassez", que limita a capacidade de tomar boas decisões. “A pessoa só pensa no que falta, e isso a consome mentalmente”, afirma.
Segundo Ferreira, a margem de até 35% de comprometimento da renda, permitida para os consignados, é enganosa. “Tem gente com 90% da renda comprometida. Não vê saída, se entrega ao desespero”. Ela defende um "quinteto fantástico" para enfrentar o problema: psicologia econômica, educação financeira, proteção ao consumidor, regulação efetiva e arquitetura de escolha para evitar armadilhas na contratação do crédito.
O bacharel em Administração pela Universidade Federal de Ouro Preto, Guilherme Thiago, pesquisou o tema em seu trabalho de conclusão de curso. Ele identificou a presença de "violência financeira" nas práticas bancárias e nas relações familiares. “Tem filho que pede para o pai fazer empréstimo. É uma violência, porque compromete a renda de quem já está fragilizado”, denuncia.
Já a bacharel em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais e técnica da universidade, Edivane Reis, foca nos idosos. Em sua pesquisa, ela apontou que essa população é alvo constante de práticas abusivas e sofre pela falta de educação financeira. “Mas o crédito bem planejado pode ser positivo, como na compra de um imóvel”, pondera. Ela ressalta que o problema maior é o uso recorrente e descontrolado.
Planejamento, educação e suporte: caminhos para não afundar
A solução não está em proibir o crédito consignado, mas em garantir que ele seja usado com consciência. Thiago recomenda que se avalie o potencial de retorno do dinheiro antes de contrair o empréstimo. “Se for para gerar receita, pode valer. Mas se for para consumo ou pagar outras dívidas, evite”, diz.
Edivane defende que as pessoas façam um diagnóstico financeiro pessoal antes de tomar qualquer decisão. Ela recomenda anotar entradas e saídas, refletir sobre os padrões de consumo e, se necessário, buscar ajuda. “A organização financeira vai muito além dos números. Tem a ver com comportamento, histórico de vida e contexto familiar”, afirma.
A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) oferece, por meio da Faculdade de Ciências Econômicas (Face), uma Clínica Financeira Universitária que atende a comunidade interna e externa. Supervisionados por professores, estudantes de finanças prestam orientação gratuita e personalizada.
Por fim, Vera Rita de Melo Ferreira reforça que o crédito não pode continuar sendo vendido como solução universal. Para ela, é urgente repensar o papel do Estado e do sistema financeiro. “Enquanto os bancos lucrarem com a miséria alheia, não há saída. A dívida virou o inferno de quem vive do trabalho e o paraíso dos banqueiros”.
Em um país onde a renda per capita é de cerca de R$ 2.000, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o valor mínimo estimado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos Dieese para uma vida digna passa dos R$ 7.000, o crédito consignado é sintoma e causa de um sistema desigual. Mudar esse cenário exige ações coletivas, coragem política e, sobretudo, respeito à dignidade de quem trabalha.
Série em áudio
Para aprofundar a discussão sobre a dengue, o Núcleo de Produção e Jornalismo da Rádio UFMG Educativa lança a série “Trocando de dívidas: um olhar crítico sobre os empréstimos consignados”. Com produção de Ruleandson do Carmo e sonoplastia de Cláudio Zazá, a série está no SoundCloud da emissora e também no Spotify.
Ficha técnica
Produção e reportagem: Ruleandson do Carmo
Sonoplastia e edição de áudio: Cláudio Zazá
Pessoas entrevistadas: Vera Rita de Melo Ferreira (IAREP), Guilherme Thiago (Ufop) e Edivane Reis (UFMG)