Ventiladores, leitos e UTIs esgotam-se em abril, projetam UFMG, Harvard e Ministério da Saúde
Estudo demonstra necessidade de construir hospitais de campanha, intensificar isolamento e aumentar oferta de testes
Em manuscrito divulgado nesta quarta-feira, 1º de abril, no servidor medRxiv, pesquisadores da UFMG, da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard e da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde alertam que os serviços hospitalares brasileiros devem começar a sofrer escassez de leitos hospitalares, de leitos de UTI e de ventiladores já no início deste mês de abril. “Os leitos de UTI são, de longe, a necessidade mais premente", sublinham os autores.
No estudo, os pesquisadores indicam uma série de medidas para mitigar o problema, mas afirmam que a única forma de evitar o colapso do sistema de saúde brasileiro nas próximas semanas é construir hospitais de campanha com novos leitos e ventiladores, intensificar sem relativizações o isolamento social e aumentar radicalmente a testagem da população. “Há uma pequena janela de oportunidade para se preparar. A resposta deve ser imediata e exigirá um esforço conjunto da sociedade”, anotam os especialistas.
Os pesquisadores simularam cenários para nove macrorregiões de saúde, conforme segmentação estabelecida pelo Ministério da Saúde, associadas a cada um dos nove municípios – São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Brasília, Porto Alegre, Salvador, Belo Horizonte, Curitiba e Manaus – que eram, até o fim do mês passado, responsáveis por 70% dos casos brasileiros diagnosticados de Covid-19.
O grupo identificou que todo o país vai enfrentar o problema de esgotamento de recursos no decorrer das próximas semanas, com algumas variações entre as macrorregiões de saúde, já que elas possuem diferentes estruturas de atenção à saúde e não apresentam o mesmo ritmo de avanço da doença – enquanto Fortaleza, por exemplo, alcançou 100 casos em apenas oito dias após o primeiro infectado, em São Paulo foram necessários 18 dias para que se alcançasse o centésimo caso, ilustram os autores do estudo. Algumas regiões, portanto, devem experimentar o esgotamento já na primeira quinzena, e outras, na segunda, no limite no início de maio, com variações também no ritmo de exaustão de leitos comuns, leitos em UTI e ventiladores mecânicos.
Para traçar diferentes cenários para a progressão do esgotamento de recursos, os cientistas articularam três grupos de variáveis (dois com duas variáveis cada e outro com três) que têm a capacidade de alterar paliativamente o cenário futuro. Essas variáveis dizem respeito à “ocupação hospitalar” (a possibilidade de se reduzir em 50% a ocupação média do ano passado, causada por outras doenças, para então se alocar mais leitos, leitos de UTI e ventiladores para casos de Covid-19), à relação “serviços públicos x privados” (considerando, por exemplo, a possibilidade do deslocamento de hospitais privados para o controle temporário do estado) e à “demanda por leitos de UTI” (se essa demanda estará na faixa de 5% ou de 12% dos casos). Articuladas, essas variáveis possibilitaram que os pesquisadores projetassem 12 cenários para cada cidade/macrorregião.
“Como estamos em uma etapa inicial de contágio da população brasileira, ainda é precoce estimarmos uma taxa de internação em UTI para o Brasil. Assim, foram adotados os cenários já relatados na literatura para a China e Itália, com um percentual de casos internados em UTI de 5% e 12%, respectivamente”, explica Lucas Resende de Carvalho, pesquisador do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da Faculdade de Ciências Econômicas (Face) da UFMG, um dos autores do trabalho.
Contudo, o que o estudo mostra é que, mesmo combinadas, todas essas medidas paliativas são capazes de, no máximo, atrasar em cerca de uma semana o esgotamento generalizado de leitos, leitos de UTI e respiradores em todas essas macrorregiões, o que seguirá ocorrendo no decorrer de abril. Isso reitera a necessidade de medidas efetivas para resolver o problema, e não apenas paliativas.
Compilando-se todos os 12 cenários delineados pelo estudo para o caso da macrorregião de Belo Horizonte, por exemplo, é possível inferir que a capital mineira e sua região metropolitana devem experimentar o esgotamento de seus leitos hospitalares de 27 deste mês a 1º de maio, a depender da articulação entre as medidas paliativas implementadas. A exaustão de seus ventiladores mecânicos, por sua vez, está projetada para ocorrer de 18 a 28 deste mês. Já o esgotamento dos leitos de UTI de Belo Horizonte e de sua macrorregião de saúde deve ocorrer do início deste mês até o próximo dia 13.
Toda a rede sob o controle do Estado
Segundo os pesquisadores, em comunidades com alta densidade populacional e infraestrutura precária, como as comunidades e favelas brasileiras, onde é praticamente inviável o isolamento social, “é provável que a transmissão ocorra rapidamente e que a população [em sua maioria sem plano de saúde] dependa principalmente do SUS, sobrecarregando rapidamente o sistema de saúde”.
Para aliviar essa alta demanda e impedir o aprofundamento das desigualdades já existentes, a alternativa ética de equidade seria “colocar temporariamente todos os hospitais privados sob o controle do Estado, uma medida adotada pela Espanha”, propõem os pesquisadores no manuscrito tornado público em caráter de urgência, dado o viés alarmante da atual pandemia. Entretanto, o estudo mostra que medidas como essa adiariam a escassez em apenas uma semana. “De fato, soluções que não envolvam a abertura de novas instalações terão um efeito muito curto no momento da escassez”, escrevem, reiterando a importância de se construir hospitais de campanha, aumentando a quantidade de leitos e equipamentos disponíveis.
Se hospitais de campanha não forem construídos com novos leitos e equipamentos, Belo Horizonte e macrorregião podem experimentar esgotamento de leitos de UTI já em meados de abril
Medidas essenciais
Como medidas essenciais, os pesquisadores assinalam a urgência de se aumentar o isolamento social – lembrando que, atualmente, “o cumprimento dessa medida está longe de ser ideal” – e de se aumentar a disponibilidade de testes, o que “permitiria ao governo rastrear e testar de maneira abrangente todos os contatos de casos positivos, uma estratégia adotada com sucesso pela Coreia do Sul”.
“Sem ações intensificadas, ou pior, se as ações atuais forem afrouxadas, o Brasil pode enfrentar a necessidade de implementar diretrizes para lidar com o racionamento de recursos de saúde”, escrevem os autores. Isso significa que, se as ações de prevenção não forem radicalizadas, provavelmente os médicos brasileiros estarão, em pouco tempo, diante do dilema de escolher, entre dois pacientes, aquele que poderá ser beneficiado pelo único ventilador mecânico disponível em determinada unidade de saúde.
SUS é trunfo
Na conclusão do manuscrito, os pesquisadores chamam a atenção para o fato de que, a despeito desse cenário, o Brasil está, em tese, equipado “de maneira única” para responder à epidemia de Covid-19. O grupo lembra que o país “possui um sistema de saúde gratuito e universal, um dos maiores programas comunitários de atenção primária, que atende 74,8% da população”, “tem histórico de resposta a ameaças à saúde implementando ações governamentais e gerando evidências científicas de alta qualidade, como por ocasião do surto de infecção pelo zika vírus”, e pôde aprender com os erros e acertos de outros países no combate ao coronavírus.
Contudo, eles alertam: “o momento atual é único. Requer uma mensagem unificada da liderança do país em vários níveis: federal, estadual e municipal, requer que a indústria trabalhe em solidariedade para produzir os insumos necessários sem ter como objetivo o lucro, mas o bem-estar coletivo, e exige que a população perceba a importância e a urgência de cumprir”.
O grupo
O manuscrito Demand for hospitalization services for Covid-19 patients in Brazil (Demanda por serviços de internação de pacientes com Covid-19 no Brasil, em tradução livre) é assinado por Lucas Resende de Carvalho, pesquisador do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar), da Faculdade de Ciências Econômicas (Face) da UFMG; Marcia Castro, Rebecca Kahn e Taylor Chin, da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos; e Wanderson Kleber de Oliveira, secretário de vigilância em saúde, Giovanny Vinícius Araújo de França, coordenador-geral de informações e análise epidemiológicas da SVS, e Eduardo Marques Macário, diretor do Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças não Transmissíveis da mesma secretaria.
Hoje atuando em Harvard, Márcia Castro também foi pesquisadora no Programa de Pós-graduação em Demografia do Cedeplar durante o mestrado. Responsável pela redação geral do manuscrito, Castro também esteve à frente da visualização, análise e interpretação dos dados. Lucas Resende, por sua vez, trabalhou na programação, na curadoria e análise dos dados mobilizados e colaborou com a redação. Wanderson de Oliveira, Giovanny França e Eduardo Macário trabalharam na curadoria e interpretação de dados. Rebecca Kahn e Taylor Chin, por fim, atuaram na programação e contribuíram na redação do manuscrito.
A denominação manuscrito é dada à versão inicial de um artigo científico antes de sua certificação pelos pares. Sua publicação é decorrência da própria situação de emergência imposta pela pandemia do novo coronavírus.