Opinião

Vieses inconscientes e racismo estrutural

Em artigo, pesquisador da filosofia sustenta que testes de associação implícita e intervenções decorrentes são insuficientes para combater o preconceito

Protesto contra o racismo na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro
Protesto na Praia de Copacabana, Rio de Janeiro: elementos individuais e científicos do racismo e do antirracismo só podem ser compreendidos em um contexto social e histórico mais amplo Tânia Rego | Agência Brasil

No campo dos fenômenos discriminatórios, muito se tem falado de “vieses inconscientes” como uma série de processos associativos automáticos que moldam nossa cognição e comportamento de forma inconsciente, gerando o chamado “preconceito implícito”. Uma característica básica desses processos é que eles são resistentes a crenças explícitas, de forma que mesmo alguém que assuma posturas igualitárias ainda pode exibir preconceito implícito por meio de vieses inconscientes.

A popularização dos vieses inconscientes se deu principalmente com o famoso “teste de associação implícita” (ou TAI) da Universidade de Harvard, já realizado por mais de 14 milhões de pessoas em todo o mundo. Em um teste típico de associação racial implícita, é preciso pressionar uma tecla, o mais rápido possível, cada vez que se vê na tela um rosto negro ou uma palavra designando uma qualidade negativa, e pressionar outra tecla sempre que se vê um rosto branco ou uma palavra designando uma qualidade positiva.

Depois, as regras se invertem, e deve-se pressionar uma tecla sempre que se vê um rosto negro ou uma qualidade positiva, e outra tecla quando se vê um rosto branco ou uma qualidade negativa. Os resultados mostram que a grande maioria das pessoas é mais rápida em associar rostos negros a qualidades negativas e rostos brancos a qualidades positivas. Isso é explicado pelos “vieses inconscientes” que guiam nossos processos cognitivos de forma automática.

Nesse contexto, o que o TAI promete fazer é mensurar quantitativamente o grau de preconceito implícito de uma pessoa, ao verificar seus tempos de reação nesse teste. Quanto mais rápida for a associação entre um rosto negro e uma qualidade negativa, maior o grau de preconceito implícito. Essa metodologia, por sua vez, nos forneceria meios cientificamente mensuráveis de promover intervenções antidiscriminatórias, já que podemos saber se uma determinada ação foi ou não bem sucedida a depender da alteração dos tempos de reação no TAI.

Isso gerou uma indústria multimilionária em torno dos vieses inconscientes, em que consultores treinados prometem detectar o grau de preconceito implícito em uma dada empresa e oferecem soluções para reduzir esse preconceito. Um exemplo dessa estratégia está na sugestão de que empresas adotem protetores de tela e exibam representações artísticas de pessoas negras de destaque, como Barack Obama e Martin Luther King. Isso porque os pesquisadores de Harvard descobriram que a exposição prévia a essas figuras pode alterar positivamente os resultados do TAI.

Mas será que o racismo está de fato dentro do nosso cérebro? Se conseguíssemos eliminar a diferença entre nossos tempos de reação a rostos negros e brancos, viveríamos em uma sociedade mais justa? O professor de direito Jerry Kang e a psicóloga Mahzarin Banaji, ambos ligados ao TAI, acreditam que sim e propuseram que políticas de ação afirmativa, por exemplo, só devem ser implementadas enquanto forem obtidos tempos de reação diferenciados entre rostos negros e brancos no TAI. Uma vez eliminada essa diferença, terão chegado ao fim os vieses inconscientes, e, consequentemente, a sociedade será mais justa.

Mas será que o racismo está de fato dentro do nosso cérebro? Se conseguíssemos eliminar a diferença entre nossos tempos de reação a rostos negros e brancos, viveríamos em uma sociedade mais justa?

O professor de direito Jonathan Kahn discorda. Em seu livro Race on the brain (A raça no cérebro), ele tece fortes críticas à concepção cientificista e individualizada do racismo presente no TAI, em que a responsabilidade cívica antirracista é transferida para experts com equipamentos e credenciais adequadas para mensurar o preconceito e o sucesso das intervenções de combate a ele. Ora, parece óbvio, argumenta Kahn, que a mera redução de tempos de reação em um TAI não é suficiente para deduzir se vivemos em uma sociedade mais igualitária. Isso se deve ao simples fato de que a intervenção deixa intocadas relações de poder, desigualdades estruturais e privilégios sistemáticos de pessoas brancas dentro desse sistema, que são os reais responsáveis pelo racismo.

Os consultores de vieses inconscientes, por exemplo, empenham-se para que um gerente de empresa, que vai conduzir uma entrevista de emprego, não manifeste vieses inconscientes que possam prejudicar candidatos negros. Mas raramente perguntam-se por que o número de candidatos negros que chegam a entrevistas de empregos para cargos mais elevados é tão inferior ao de candidatos brancos. Essa é uma consequência do racismo estrutural, que faz pessoas negras pouco se beneficiarem de treinamentos em vieses inconscientes, já que enfrentam dificuldades sistêmicas para chegar a essas entrevistas em primeiro lugar. Em suma, não podemos focar nossas ações antirracistas no uso de protetores de tela de Barack Obama por gerentes brancos de grandes empresas nem transferir a autoridade sobre o que é o racismo ou como combatê-lo a especialistas com o tipo certo de tecnologia. Essa faceta do racismo estrutural não é algo que aparece em um teste de associação implícita, o que levanta sérios problemas para essa nova tendência de compreender o racismo nesses termos.

Pouco importa se conseguimos alterar nossas associações automáticas entre pessoas negras e qualidades negativas se as relações raciais continuam ocorrendo dentro de um sistema estruturalmente racista.

Essa constatação, porém, não invalida as importantes descobertas feitas pelo TAI. Graças a ele, agora temos uma ideia muito mais clara dos efeitos nocivos de uma sociedade racista sobre a cognição individual. O problema não está nos resultados do TAI, mas nas conclusões que extraímos com base neles. O ponto central do livro de Kahn é que não devemos focar nossos esforços na alteração desses resultados em si. Esses resultados só fazem sentido quando inseridos em um contexto mais amplo do que significa ter certas características fenotípicas em uma sociedade em que pessoas têm desvantagens sistemáticas em uma série de indicadores sociais. Em outras palavras, o racismo é propriedade de todo um sistema de privilégios e não de sistemas cognitivos individuais.

Isso não significa também que não há nada que se possa fazer, no plano individual, em relação a intervenções antirracistas. O antirracismo é, afinal de contas, uma luta diária, que se trava em múltiplos fronts ao mesmo tempo. O ponto deste breve ensaio é apenas enfatizar que os elementos individuais e científicos do racismo e do antirracismo não podem ser supervalorizados e só podem ser compreendidos dentro de um contexto social e histórico mais amplo que dê sentido a eles. Pouco importa se conseguimos alterar nossas associações automáticas entre pessoas negras e qualidades negativas se as relações raciais continuam ocorrendo dentro um sistema estruturalmente racista.

Em outras palavras, programas de treinamento acreditam que o racismo estrutural pode ser entendido em termos de vieses inconscientes, mas é justamente o contrário: o racismo estrutural é que dá sentido aos vieses inconscientes.

Felipe Nogueira Carvalho / Pesquisador de pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Filosofia da