Boletim
Rumo aos 90
O pintor, o Poeta e o Quixote
Abertura das comemorações dos 90 anos da UFMG será marcada por exposição em que Portinari e Drummond fazem releitura artística da obra-prima de M
Um dos destaques das comemorações dos 90 anos da UFMG é a abertura da Exposição D. Quixote – Portinari e Drummond: releituras de Cervantes, organizada pela Diretoria de Ação Cultural. Com originais e reproduções – ampliadas em painéis de 21 desenhos de Candido Portinari –, a mostra tem como tema O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, obra-prima de Miguel de Cervantes. Cada desenho é acompanhado de glosa poética de Carlos Drummond de Andrade.
“A arquitetura dessa mostra desperta um olhar reflexivo e comparativo de como o artista e o poeta se inspiram e fazem uma releitura da grande obra de Cervantes”, afirma Fabrício Fernandino, professor do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Belas-Artes e curador da exposição. A mostra está sendo montada por ele no Espaço Expositivo do prédio da Reitoria e será aberta nesta quinta-feira, dia 8, às 18h. A exposição poderá ser visitada gratuitamente de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h, até o dia 30 de novembro.
“Essa exposição vem em um momento muito oportuno e justo, em que precisamos acreditar na nossa capacidade de superação, na nossa capacidade de reinterpretar, recriar a vida e principalmente acreditar nas nossas utopias e no poder transformador do sonho. Em meio ao caos, ações como essas nos fazem refletir”, afirma o curador.
“A arquitetura dessa mostra desperta um olhar reflexivo e comparativo de como o artista e o poeta se inspiram"
A vice-reitora Sandra Goulart Almeida também destaca a honra que é para a Universidade realizar uma exposição tão importante no contexto das comemorações dos seus 90 anos. “Uma das temáticas que estamos trabalhando nessas comemorações é a ideia de ‘presente’. O que você quer dar de presente? E o que gostaria de receber? Essa exposição é, pois, resultado de um presente que a UFMG recebeu do professor José Carlos Bom Meihy”, registra a vice-reitora. [leia mais na página ao lado].
Na mostra, também será apresentado valioso acervo de edições da coleção de obras raras da UFMG associadas a Cervantes e a sua obra máxima, e serão exibidos documentários sobre Portinari e Drummond. Além disso, haverá projeção de uma coleção de gravuras do pintor, desenhista e ilustrador francês Gustave Doré e exposição de esculturas de José Amâncio de Carvalho, professor aposentado da Escola de Belas Artes. Todas as obras se relacionam com o universo ficcional do romance de Miguel de Cervantes. O ano de 2016 também marca os 400 anos da morte do escritor espanhol.
Só o começo
A diretora de Ação Cultural, Leda Maria Martins, lembra que esta é apenas a primeira de uma série de ações que serão realizadas durante o ano de comemoração dos 90 anos da Universidade, iniciado agora, em setembro. “Temos um calendário de várias exposições e atividades programadas até setembro do ano que vem com base no patrimônio cultural e no acervo artístico da UFMG”, afirma. Leda anuncia a organização de um colóquio que mobilizará, não apenas a obra dos três artistas da atual exposição, como a de Shakespeare, escritor cuja morte também acaba de completar 400 anos.
A professora ressalta a importância dos artistas agora apresentados. “Portinari foi um dos maiores artistas do século 20. Drummond, um dos maiores poetas do século 20. E Quixote, de Cervantes, é uma obra realmente fundamental, que inaugura a narrativa moderna. Esses três nomes têm uma importância estética e cultural extraordinária. Assim, para a DAC, é uma honra possibilitar o acesso a esse material”, afirma.
“Portinari foi um dos maiores artistas do século 20"
Segundo ela, a DAC está trabalhando na elaboração de uma política institucional para o acervo artístico da UFMG. Seu objetivo é traçar diretrizes para a conservação e manutenção das obras em posse da Universidade e estabelecer meios para exposições e pesquisas. Essa proposta de política deve ser apresentada formalmente à Reitoria ainda em 2016.
Raridade
Neste ano, José Carlos Sebe Bom Meihy, professor aposentado da USP, doou para a UFMG um exemplar raro da publicação D. Quixote: Cervantes, Portinari, Drummond. Coube à DAC gerenciar todo o processo formal de doação. Inspirado nesse volume, o professor Fabrício Fernandino elaborou a exposição.
A publicação foi impressa pela editora Fontana, do Rio de Janeiro, em 1978, em uma edição de mil exemplares. Cinquenta deles foram assinados por Drummond, e o exemplar recebido pela Universidade é um deles.
Na obra – publicada anteriormente em pequenas tiragens –, estão reproduzidos todos os 21 desenhos de Portinari, cada unidade em seu tamanho original. O livro também traz as 21 glosas que Drummond escreveu interpretando a obra de Cervantes.
Conforme informa o site do Projeto Portinari, o artista produziu os desenhos por encomenda da Editora José Olympio, com o objetivo de ilustrar os poemas de Drummond. Ainda segundo o site, originalmente teriam sido produzidas 22 obras, e não 21 – mais um entre os mistérios que dão cor à história e à memória da cultura brasileira.
Reinvenção pelo lápis de cor
Em 1953, Portinari foi internado após sofrer uma hemorragia intestinal. Segundo os médicos, a causa era o uso de pigmentos que continham metais pesados, como chumbo, cádmio e prata. Portinari ainda insiste por alguns anos em usar esses produtos, mas, diante do risco iminente de morrer, é instado por seus médicos a abandonar de vez o uso das tintas em 1956. “Estou proibido de viver”, teria dito o artista à época.
“O artista, em fase terminal, conserva a liberdade de uma criança e a força do gênio"
Contudo, Portinari encontra novo instrumento para continuar exercendo sua arte: o lápis de cor. “Essa é a origem dos desenhos”, informa o texto introdutório do volume recebido pela UFMG. Todos os 21 desenhos reunidos no volume foram feitos exclusivamente com lápis de cor.
“O artista, em fase terminal, conserva a liberdade de uma criança e a força do gênio. Já as glosas de Drummond refletem o sentimento único do poeta. Um misto de emoção e poesia. Lado a lado, eles interpretam a faceta quixotesca de uma realidade ficcional magistralmente escrita por Cervantes”, opina Fernandino.
Candido Portinari morreu no dia 6 de fevereiro de 1962, em razão dos efeitos da intoxicação pelo chumbo. Suas principais obras estão hoje expostas em salões nobres do Brasil e do mundo, como a sede da ONU, em Nova York, nos Estados Unidos, que abriga os painéis de Guerra e paz.
SAGRAÇÃO
(Carlos Drummond de Andrade)
Rocinante
pasta a erva do sossego.
A Mancha inteira é calma.
A chama oculta arde
nesta fremente Espanha interior.
De giolhos e olhos visionários
me sagro cavaleiro
andante, amante
de amor cortês a minha dama,
cristal de perfeição entre perfeitas.
Daqui por diante
é girar, girovagar, a combater
o erro, o falso, o mal de mil semblantes
e recolher, no peito em sangue,
a palma esquiva e rara
que há de cingir-me a fronte
por mão de Amor-amante.
A fama, no capim
que Rocinante pasta,
se guarda para mim, em tudo a sinto,
sede que bebo, vento que me arrasta.