Ocaso de um mundo
Em livro, pesquisador da comunicação discute caráter anacrônico do jornalismo em razão de sua relação intrínseca com a modernidade
Quando começou a proclamada crise do jornalismo? Nem os próprios profissionais parecem se lembrar do princípio dessa história, o que gera uma resposta paradoxalmente vaga e precisa: “desde sempre”. Não é por acaso. Ofício típico da modernidade, o jornalismo parece padecer dos seus mesmos problemas, como o seu intrínseco anacronismo.
Motivado por essa relação, o pesquisador e jornalista Nuno Manna escreveu o livro Jornalismo e o espírito intempestivo: fantasmas na mediação jornalística da história, na história, obra em que põe em discussão a intempestividade dessa atividade profissional. Desdobramento da tese que o pesquisador defendeu na UFMG em 2016, o e-book saiu pelo selo editorial do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da UFMG.
Como objeto de pesquisa, Nuno Manna consultou exemplares da Folha de S. Paulo e do The New York Times para discutir a intempestividade e as fantasmagorias reveladas na leitura jornalística – além da dificuldade que a imprensa tem de cumprir, na prática, a sua pretensão de alcançar a realidade presente por meio da sistematização, da quantificação e da ordenação de informações.
Em sua reflexão teórica, o pesquisador parte do princípio de que a história e o ocaso do jornalismo, sintetizados na imprecisa ideia de “crise”, confundem-se com a própria história e ocaso da modernidade. Ao tomar o jornalismo como instrumento de mediação da experiência histórica, criador de um “mundo comum” para as pessoas, a percepção é de que ambos – jornalismo e modernidade – desencadearam uma inédita configuração narrativa de nossas experiências do tempo. Em algum momento, no entanto, essa configuração se tornou problemática e, consequentemente, anacrônica.
Manna sugere, assim, que a crise do jornalismo, no frigir de suas prensas, é uma manifestação de uma crise maior – a da própria modernidade – e de seu fracasso em cumprir suas promessas progressistas. Com isso, o pesquisador põe em xeque uma antiga metáfora: a do jornalismo como um espelho do tempo. “Esse pretenso racionalismo moderno vem acompanhado de certa sombra, tudo aquilo que o jornalismo não alcança. E, muitas vezes, é a essa sombra que temos acesso ao ler o jornal”, ilustra.
Assombrações
No livro, Nuno Manna aborda a aparente oposição entre a narrativa jornalística e a narrativa ficcional fantástica, já que ambas nascem dentro de um mesmo regime de historicidade, a modernidade. Nesse sentido, a tese do pesquisador é de que o jornalismo é “assombrado” por tudo o que vai na contramão desses paradigmas e por aquilo a que ele afirma se opor. “Tentei mostrar como o jornalismo moderno e as narrativas fantásticas, diferentemente do que se supõe, não são universos distintos: estão interconectados e têm muitos aspectos semelhantes”, provoca.
“Tentei mostrar como o jornalismo moderno e as narrativas fantásticas, diferentemente do que se supõe"
O pesquisador afirma que a narrativa jornalística propõe interpretar o mundo, criar inteligibilidade para as coisas, constituir-se em ambiente no qual a sociedade se ofereça diariamente ao entendimento, narrar como a história se organiza no momento atual e informar o que existe e o que não existe. “Trata-se de uma dimensão não só temporal, mas ontológica, mesmo. É uma retórica toda baseada na razão, no progresso, na organização, em estéticas realistas”, lembra. Contudo, afirma o pesquisador, encontramos “fantasmas da modernidade” o tempo todo quando abrimos o jornal diário.
“Quando pensamos na realidade do Brasil – o cenário atual, as questões existentes – observamos a recorrência de uma série de elementos do passado, dos quais não conseguimos nos livrar: escravidão, ditadura militar, cultura do subdesenvolvimento, contradições sociais. É como se a atualidade buscasse marcar uma distância e superar o passado, mas essa tentativa falha, e ela acaba justamente ‘marcando’ esse passado no presente, de forma intempestiva”, resume.
E-book: Jornalismo e o espírito intempestivo: fantasmas na mediação jornalística da história, na história
Autor: Nuno Manna
Editora PPGCOM
292 páginas (disponível gratuitamente no site da editora)