Candido mestre
Considerado o mais importante crítico literário brasileiro do século 20, Antonio Candido (1918-2017) deixa um precioso legado humanista. Para ele, “a literatura é o sonho acordado das civilizações”. O exímio professor destacou o papel fundamental da literatura no processo de formação reflexiva e sensível da humanidade. A respeito, no fabuloso texto O direito à literatura (1988), Candido sublinha: “A literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante”.
Seu clássico Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, de 1959, é um estudo que pode ser colocado lado a lado com os grandes livros de compreensão do país, como Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. A formação de um sistema literário próprio, demonstra o autor, foi um patamar de constituição da nacionalidade, assim como se deu com a economia e as relações sociais. Para Candido, a literatura de um país só existe se ela estiver vinculada a um sistema literário, em que autores produzem e publicam suas obras e são lidos por um público leitor, gerando tradição. Ou seja, os escritores, com a bagagem de quem leu seus pares, criam suas obras na tentativa de alcançar uma magnitude literária especial.
Antonio Candido foi também autor de reflexões fundamentais nos campos da política, educação, história e ciências sociais, com destaque para o livro Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida (1964). Antes de se dedicar aos estudos literários, Candido trabalhou como assistente de sociologia e, em 1942, inscreveu-se para o doutorado em ciências sociais, sob orientação de Fernando de Azevedo. Sua primeira intenção, que já anunciava vocação maior para os estudos literários, foi analisar a relação entre a poesia popular e a mudança social, tendo como objeto a manifestação do cururu no interior paulista. O interesse pelo mundo real e pela cultura rústica permaneceu, mas a tese acabou se transformando numa pesquisa sobre o caipira e suas condições de vida. Entre 1948 e 1954, ano da defesa da tese, Antonio Candido estudou o caipira da cidade de Bofete, no interior paulista, ampliando a pesquisa original sobre a poesia, a dança e a música da região.
A carreira do livro, assim, ficou muito marcada pela recepção nas escolas de sociologia, tendo-se tornado um modelo de trabalho antropológico que ia além do tradicional estudo de comunidades. Destaque para a reconstrução histórica da região feita por Candido, com base em documentos, relatos de viajantes e depoimentos de velhos interioranos. O estudo mostra a formação da sociedade caipira a partir da expansão paulista, quando os homens deixaram de lado as expedições para se fixar na terra, no fim do século 18. Em seguida, Antonio Candido passa a descrever o impacto da urbanização na vida do caipira, que se intensifica no fim do século 19. As mudanças vão desde questões materiais, como a construção de moradias provisórias e o tipo de lavouras e técnicas de plantio, até a psicologia e a cultura do homem do campo.
No coração da pesquisa, encontra-se uma acurada análise da dieta caipira ou, em outras palavras, uma etnografia da dieta dos parceiros. O feijão é a base e as misturas (carnes e ovos), muito raras, geravam a sensação de fome psíquica, frustração que acompanha sempre o homem da região. Se o mundo caipira caminha para o fim, ele cria suas formas de resistência, que se estabelecem tanto na vida prática como na complexa psicologia do parceiro, que aceita as mudanças inevitáveis, mas se apega aos valores do passado. No entanto, como o fator absoluto é a falta de terras para todos, a saída só pode ser a reforma agrária. Mesmo em sua franca simpatia com o caipira, o autor não cai no romantismo de defender soluções passadistas, como o retorno à situação tradicional. Já naquele momento, percebe que há saída autônoma para o homem rural. A transformação precisa ser ampla e radical, envolvendo toda a sociedade.
Candido reconcilia o caipira marginalizado e desconsiderado com a história brasileira; trata-o como um protagonista da história social do país. Na dialética dos mínimos vitais (a pobreza, a economia de subsistência ou a integração marginal ao mercado) e dos mínimos sociais (o bairro rural, o familismo e a vida comunitária dessa unidade de referência da sociabilidade caipira), Candido encontra e mostra o homem rústico do sertão como agente ativo do processo histórico, consequência mesmo das condições adversas de sua pobreza.
Com essa mesma sensibilidade social, o crítico literário, em Dialética da Malandragem (1970), mostrou, ao longo da história, a grande injustiça que sempre se fez contra a figura do malandro. Curioso é que, se você for ao dicionário e procurar a palavramalandro, ela está lá: indivíduo desonesto, mas também astuto, habilidoso etc. E é essa habilidade, essa astúcia e a capacidade para sobreviver que Antônio Candido estudou profundamente. A figura do malandro é, em última análise, a representação da capacidade de sobrevivência que o pobre e o desfavorecido no Brasil sempre tiveram de demonstrar. Nosso maior crítico literário sabia o momento da arte e a hora da política. A capacidade de pôr em diálogo esses dois universos foi uma de suas maiores astúcias.
* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela UFMG. Graduando em Letras pela UnB