Um passeio na cidade pelos caminhos da roça
O mês de junho está chegando e, com ele, as tradicionais festas juninas, evento espacializado em todo o país. Nessa época, escolas, comunidades e empresas se mobilizam para comemorar as datas de Santo Antônio, São João Batista e São Pedro. Rifas, prendas e ensaios se desdobram e motivam muitos a dançar nesses festejos. Além da dança intitulada “quadrilha”, que narra um pouco da ampla realidade rural, há um conjunto de quitutes e quitandas para serem saboreados: pipoca, canjica, paçoca e quentão, entre caldos e porções, despertam os sentidos.
Mas a festa junina está longe de ser um evento que agrega sabores e saberes numa perspectiva reflexiva. Ainda se caracteriza como uma comemoração alienante e alienadora. Essa festividade camufla, há muitos anos, o histórico embate entre campo e cidade, no âmbito das relações capitalistas contemporâneas. O jeito “errado” de falar do camponês, o dente pintado de preto denotando ideia de “apodrecimento”, as roupas “remendadas” denunciam que alienadamente contribuímos para ampliar e consolidar o estereótipo do homem do campo como atrasado, um ser em retrocesso face ao citadino.
Sabemos que existem distorções históricas que não caberia aqui discutir dada a sua complexidade. Mas resta-nos protagonizar novos processos de ver e promover a festa junina em um contexto de reaproximação entre campo e cidade. Com esse intuito, o “passeio na cidade” e o “caminho da roça” se formatam como itinerários antagônicos, porém complementares. Basta pensarmos que a cidade, na perspectiva teórica da ecologia, é entendida como um organismo consumidor, e o campo, como “produtor”. E esse consumo, muitas vezes exacerbado e sem limites, tem contribuído para a submissão das populações camponesas à égide urbano-industrial capitalista. É preciso rever e remodelar esse paradigma.
Existe uma quadrilha que deve ser repensada nos moldes ecológicos. Assim, o passeio na cidade será um avancê [do francês “avancer”], um tour e um returnê [“retourner”] para entender a multifuncionalidade citadina e sua conexão com a paisagem rural. Esse elo possibilita compreender a cidade como realidade distinta, não mais significante do que o campo e suas populações. Na cidade, estão elementos que possibilitam identificar caminhos da redescoberta, de uma essência originada na roça, com seus saberes e fazeres e seus jeitos de ser e estar no mundo.
Vamos caminhar citadinos rumo às nossas origens camponesas que nos remetem aos ancestrais, à cultura de outros tempos e lugares. Percorramos essas trilhas rumo aos elos perdidos. Se no caminho a ponte estiver quebrada, pensemos no córrego poluído com esgoto e lixo. E por falar em lixo, o que originalmente é gerado nas comunidades rurais acaba transformando-se em resíduos e em problemas. Pensemos então nas lixeiras, cestos que acolhem nossos resíduos, muitas vezes desnecessários e supérfluos. Que esse cestinho transforme-se em flor, a florescer a reciclagem. Olha o plástico, olha o papel (reciclar), olha o vidro, olha o metal (reciclar) olha o rejeito (descartar). Olhando o orgânico, pensemos no desperdício e nos problemas relacionados a ele. Que não precisemos mais de cestinhos de lixo e que, em seus lugares, haja flores e florestas. É a retomada de uma nova cidade, na qual a premissa da qualidade de vida seja a máxima dos gestores e dos cidadãos.
E por falar em cidades com seus ambientes impermeabilizados e compactados, sem verde e sem espaço, olha a chuva, que deu enchente. Será por quê? A chuva já passou, mas voltará, precisamos planejar. Olha a chuva, que ameniza o calor e garante a manutenção da vida. Já passou e que volte logo, para fazer germinar campos e pastagens, florestas e matas, sonhos e esperanças. Pensemos na cidade que faz e refaz suas paisagens e encontremos um túnel, escavando o morro. Olha o túnel necessário à mobilidade viária. Que ele se efetive protegendo matas e nascentes citadinas, espaços de vida animal e vegetal ainda que ignorados em alguns processos.
Na cidade há outros seres que devem ser redescobertos. Seres que povoavam o imaginário e a cultura de nossos ancestrais rurais. Olha a cobra, olha a jaguatirica, olha a jacupemba, olha a rã, olha a joaninha. Que a cidade floresça em sons e cores, demonstrando uma biodiversidade que insiste em sobreviver em meio ao caos diário. Voa andorinha, volta pra floresta ainda protegida. Voa gavião, vai andar pelo parque da cidade. Repetindo as chamadas entoadas ao som da música camponesa, repensemos e busquemos a cidade perdida. A urbe que começou na roça e se perdeu nos dias de hoje. A cidade que se redescobre e se reinventa tendo a paisagem rural como fonte inspiradora e matriz de energia a se fazer e refazer no imaginário de citadinos e camponeses, que agora se amontoam em uma única dança. Uma dança semelhante a um caracol. Olha a rede, por uma cidade e por um campo em que todos participam de um mundo melhor. Então, avancê, tour, returnê! Cestinho de flor, olha o campo, olha a cidade! Integrou!
*Geógrafa e doutoranda do IGC-UFMG. Pesquisadora na área de paisagens culturais camponesas, indígenas e quilombolas
**Agente da Rede Ação Ambiental com formação em Ecologia, Geografia, Magistério, Patrimônio e Turismo