Muito antes pelo contrário
O pedido de um artigo sobre a reforma trabalhista chegou por e-mail, e a minha primeira reação foi dizer não. Mas fui calculando se minha posição tinha a dose exata de inconsistência para se integrar ao momento de tantas certezas gritadas em manchetes, slogans, frases de efeito: Não sou contra nem a favor, muito antes pelo contrário.
Confesso que estou em cima do muro. E confesso também que gostaria de contar, num relato que beiraria as mil e uma noites, tudo o que vejo de lá. Então, pareceu valer a pena aproveitar os cinco mil caracteres com espaços que me foram dados para falar sobre a reforma trabalhista, sem pronunciar palavras ocas. Modernização, flexibilização, negociado sobre o legislado, segurança jurídica: todos são termos/expressões inconsistentes diante das contingências e do agudo da experiência. Eles escamoteiam necessidades e dificuldades que foram se impondo ao longo da dinâmica das interpretações que criaram, a partir de 1943, com a Consolidação das Leis do Trabalho, os caminhos de regulamentação da relação de emprego, sobretudo os que se imiscuem nas relações entre sindicatos e entre sindicato e empresa.
Aceita a encomenda, estou há dias paralisada diante deste computador. A cada tentativa de avançar na leitura do projeto de lei ou das críticas a ele feitas, sou atropelada por uma sensação de desespero. Mesmo entendendo as razões de cada dispositivo, temo que implicará a criação de mais embate. Mesmo aceitando que a negociação coletiva é uma forma excepcional de regular a relação de emprego, temo que ela não seja conhecida nas entranhas por todos os que dela falam.
Leio as críticas feitas pelo Ministério Público do Trabalho em Nota Técnica. Leio a manifestação de 17 dos 27 ministros do Tribunal Superior do Trabalho entregue ao presidente do Senado. Mas as exposições, se apontam erros que o projeto possa ter, não enfrentam os excessos que se enclausuram nos processos judiciais e, com isso, pintam a imagem de um direito do trabalho santificado, quando as salas de audiência exalam litígios que beiram o absurdo.
Quem acredita que um empregado tenha pleiteado, como horas-extras, os 15 minutos que gasta no elevador da Santa Casa de Misericórdia entre o térreo e o local onde ele bate o cartão de ponto? Quem se interessa pela empresa que transformou seus vendedores em franquias, como se cada um fosse um estabelecimento? Quem distingue, no meio das muitas ações, aquelas em que o empregado quer ser mandado embora para receber o FGTS e o seguro-desemprego em vez de pedir demissão? Quem pode desvendar, num pedido de equiparação salarial em cadeia, que o empregado de hoje, comparando-se ao empregado de antigamente que ele nem conheceu, quer ver o seu salário de R$2 mil majorado para R$29 mil? Quem já se assustou com uma interpretação da CLT que cria um direito novíssimo chamado intervalo intersemanal e que pretende que o empregador pague 35 horas extras além do dia em dobro já devido ao empregado que trabalhe no domingo sem folga compensatória?
O direito do trabalho brasileiro não se forma daquilo que seria o essencial como direito do trabalhador: boa remuneração, jornada controlada e previsão de tempo suficiente para ociosidade (intervalos intra e interjornada, repouso semanal, férias), condições ótimas de segurança e de salubridade, garantia de emprego, meios para a formação acurada e criativa de profissionais das mais diversas áreas.
Há vários benefícios acessórios que se consolidam na tradição. Os anos 80, no período de alta inflacionária, viram surgir o vale-transporte, a participação nos lucros e nos resultados, o auxílio-alimentação e suas variações, o auxílio-creche, o plano de saúde e vários outros institutos, muitos deles previstos em normas coletivas e todos eles tendo como característica o fato de não se sujeitarem à incidência em contribuição previdenciária e de reflexos em férias, 13º salário, FGTS e aviso prévio.
O direito do trabalho é, hoje, um cipoal de regras e de saberes que a reforma não vai simplificar. Na profusão de seus dispositivos, na gama de questões de que trata o projeto, faço uma aposta macabra com o futuro. E imagino salas de audiência pululando de pedidos, recursos a questionar minúcias abertas pelos dispositivos cuja redação amplia a mobilidade que se outorga ao intérprete.
No lado contrário do contra ou do a favor, está o olhar para cada um dos pontos da reforma trabalhista como um aceno para a história enorme que precisa ser pesquisada. Falar disso para a Universidade pode revelar a esperança de que se abra uma pesquisa que seja um esforço para desvendar as necessidades no trabalho de cada ofício. Nada está resolvido. Não há segurança jurídica que se construa apenas pela promessa de uma lei. Há um saber sobre relações humanas no trabalho que exige um exame sem mistificações e que não cabe em frases de efeito, porque é relato plurívoco e infinito.
* Professora associada da Faculdade de Direito da UFMG. Desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais