Rupturas de barragens de rejeitos: um crime contra a humanidade?
Estamos diante de mais uma inaceitável tragédia social envolvendo o mundo do trabalho e o meio ambiente: a ruptura de barragens de rejeitos minerários do Córrego do Feijão da mineradora Vale, em Brumadinho (MG), ocorrida em 25 de janeiro último. É lamentável dizer que esta não é a primeira e, ao que tudo indica, não será a última tragédia do gênero. Podemos citar alguns casos significativos, registrados nas últimas três décadas, de rompimentos de barragens de mineradoras que resultaram em mortes e/ou danos humanos e ambientais no estado: Grupo Itaminas (Itabirito, 1986), Mineração Rio Verde (Nova Lima, 2001), Mineradora Rio Pomba Cataguases (Miraí, 2007), Companhia Siderúrgica Nacional (Congonhas, 2008), Herculano Mineração (Itabirito, 2014) eSamarco/Vale/BHP Billiton (Mariana, 2015).
Em Minas, existem várias barragens classificadas como de alto risco, entre as quais, muitas pertencem à Vale. O mesmo acontece com barragens localizadas em outros estados brasileiros, a exemplo do Pará, Rondônia e Mato Grosso. Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), as barragens que se romperam em Brumadinho estavam classificadas na categoria de “alto dano potencial associado”. Não podemos esquecer que há pouco mais de três anos a mesma Vale, juntamente com a Samarco/BHP Billiton, foi responsável pelo gravíssimo crime socioambiental da Barragem de Fundão, em Mariana, que atingiu todo o território da Bacia do Rio Doce, matou 19 pessoas e deixou centenas de desabrigados. O tempo decorrido entre as duas tragédias não foi e nunca será suficiente para cicatrizar as feridas que estão nos corpos, nas mentes, nos corações e nas almas das populações que habitam o território do Doce. Elas sequer foram tratadas e reparadas e já nos deparamos com novo caso envolvendo a mesma empresa.
A história de recorrências de rompimentos de barragens em Minas parece demonstrar que nada ou pouco se aprendeu e se fez a partir das tragédias ocorridas, em particular daquela causada pela Samarco/Vale/BHP Billiton em Mariana. Em Brumadinho, questões básicas de segurança não foram adotadas ou não funcionaram: as sirenes não tocaram para alertar trabalhadores e comunidades do entorno; o setor administrativo e o refeitório foram instalados próximos e à jusante da barragem que se rompeu, entre outras.
Nem a empresa nem o Estado parecem ter corrigido suas posturas e práticas para reparar os casos antigos e evitar casos futuros. O Estado, além de continuar com grandes falhas na fiscalização, flexibilizou a legislação relativa à licença ambiental e também a trabalhista, precarizando as condições e as relações de trabalho. E agora, de novo, vêm à tona destruição, mortes, adoecimentos, sofrimentos, perdas, danos, desamparo, desinformação, despreparo, desrespeito, omissões, conivências, irresponsabilidades, incompetências, impunidades e injustiças. O número final dos atingidos em Brumadinho, incluindo mortos e desaparecidos, ainda não está consolidado, mas já se sabe que muitos corpos não serão localizados, aumentando em muito o sofrimento daqueles que sequer terão o direito de velar e enterrar seus familiares e amigos.
Pela sua dimensão, o rompimento das barragens da Vale em Brumadinho não foi mais uma banal, restrita e “acidental” ruptura de barragem. Pelo contrário: já se pode observar a presença de gravíssimas (in)consequências. Mais um avassalador “mar de lama” foi formado. Centenas de trabalhadores, a maioria da Vale, e outras pessoas morreram, neste que já pode ser considerado como o maior acidente de trabalho do Brasil. Não há dúvida de que cabe à empresa reparar e arcar com os danos causados aos atingidos, ao meio ambiente e ao Estado. Cabe ao Estado assumir seu papel regulador e fiscalizador das condições de operação das empresas do setor mineral, visando à proteção dos indivíduos e da coletividade. À sociedade civil, cabe liderar a luta por condições de vida e de trabalho dignas para todos.
Os impactos e os cuidados à saúde dos atingidos exigem uma abordagem ampliada com o reconhecimento e a integração das dimensões físicas, mentais, sociais e espirituais do processo saúde-doença, numa perspectiva individual e coletiva, no curto, médio e longo prazos. A população atingida, incluindo trabalhadores e voluntários envolvidos no resgate e no cuidado imediato daqueles diretamente impactados pela catástrofe, deve ser suprida nas suas necessidades assistenciais e de vigilância em saúde pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Um “acidente” ampliado do trabalho, que deve ser sempre entendido como evento evitável e prevenível, tem sua origem num determinado ambiente, cujos impactos e efeitos se estendem para outros ambientes causando danos humanos, ambientais, sociais e econômicos. É importante frisar que não haveria tragédia se não houvesse uma causa e um risco no processo de trabalho da mineradora. Esse entendimento é importante para que se estabeleçam estratégias efetivas de intervenção que privilegiem a atuação sobre os determinantes-causas e não só sobre os efeitos.
Por detrás desse complexo evento, há um processo histórico de modelo de desenvolvimento econômico e social, com diversos atores sociais envolvidos num cenário de contradições e conflitos de interesses. Nesse sentido, a ideia de crime contra a humanidade, com a qual se inicia esta pequena contribuição ao debate, nos parece pertinente. Esse conceito começou a ser formulado para os crimes de guerra e passou a ser gradativamente ampliado para outras áreas, inclusive para agressões ao meio ambiente a partir de 2016 (ecocídio). Um “acidente” do trabalho ampliado que gera um ecocídio e um ergocídio deveria ser considerado crime contra a humanidade com todas as suas implicações jurídicas e penais.