A besta e o sabido
Considerando a vastidão territorial, a multiplicidade étnica e cultural, a desigualdade e a deficiência crônica em áreas básicas para o progresso humano, governar o Brasil é tarefa para quem, antes de tudo, enxergue essas questões como estímulo e, de forma empática, saiba liderar a nação em busca de soluções para tantas mazelas. Um governante, pois, para dar conta da responsabilidade de influenciar a vida de milhões de pessoas, deve estar munido de uma série de atributos que o qualifiquem para esse desafio. Em Do institutions matter? (As instituições importam?, em tradução livre), publicado em 1993, R. Kent Weaver e Bert A. Rockman enumeraram as dez capacidades que seriam indispensáveis a todos os governantes, seja qual for o sistema político-eleitoral de um país.
A primeira é a capacidade de definir prioridades diante da miríade de interesses coletivos em jogo, muitos deles contraditórios. Uma vez definidas as prioridades, é fundamental que um governante saiba empregar os recursos humanos e financeiros para atingir seus objetivos eficazmente, o que se constitui na segunda capacidade. A terceira é a de inovar quando os modelos até então experimentados mostram-se ineficazes para o alcance dos objetivos propostos. A quarta capacidade é a de construir um “todo coerente” por meio da coordenação de projetos conflitantes. A quinta capacidade indispensável a um governante é a de impor perdas a grupos poderosos. Não raro, os interesses desses grupos se contrapõem ao interesse nacional. A um governante cabe fazer a justa distinção. A sexta capacidade que os eleitores devem identificar em seus escolhidos é a de saber representar “interesses difusos e desorganizados” ao lado de “interesses concentrados e mais bem organizados”. Definido um programa de governo, cabe ao governante cuidar de sua execução, avaliando eventuais mudanças que possam se interpor no caminho. Esse é o sétimo atributo básico enumerado pelos autores. A oitava capacidade diz respeito ao compromisso que os governantes devem assumir com a estabilidade política, de modo a criar as condições para que as ações do poder público possam surtir os efeitos delas esperados. O mesmo vale – aqui já entrando na nona capacidade – para os compromissos assumidos no plano internacional, área em que devem estar separados claramente os interesses de governo e de Estado. Por fim, um governante deve ser o primeiro a se mostrar aberto à conciliação das divisões políticas, a fim de garantir que a sociedade “não degenere numa guerra civil”. Ou seja, é papel de um governante pacificar a sociedade e não estimular rupturas.
A democracia genuína é a realização de seres dignamente humanos, comprometidos com o bem-estar de todos, da partilha e não da competição.
No Brasil, governar, com raras exceções, significa exercer a titularidade no domínio do dinheiro público para fins privados e corporativos. Desse modo, a corrupção rompe um estado de coisas que se encontrava, até então, correto. Corromper é, dessa forma, desnaturalizar, desviar uma coisa do fim para o qual eticamente tende. No aspecto individual, supõe-se o caráter humano sendo adulterado. No aspecto social, supõe-se uma sociedade com normas claras, gerais e operantes, com as leis homogeneamente compreendidas e aceitas e com o ato corruptor vindo a degradar o estado das coisas.
Boicotando a dignidade e o senso crítico, a corrupção é a tirania da esperteza realizando-se em atalhos desprezíveis. Isso explica a razão da falta de investimentos nas áreas de educação e cultura, historicamente marginalizadas pelos “donos do poder”.
Por que governar, nessas circunstâncias, está longe de ser uma arte primada pela ciência política? Em um “tratado de filosofia política” que faria inveja a Maquiavel (1469-1527), os repentistas Caju (1963-2001) e Castanha explicam muito bem como funciona esse jogo sujo: “Quem é que vive mais / O ladrão besta ou o sabido? / O besta morre logo / e o sabido é garantido / Quem é que vive mais / O ladrão besta ou o sabido? / O besta morre logo / e o sabido é garantido / Diz o ladrão sabido / Só anda bem arrumado / O seu relógio é de ouro / O seu carro é importado / Passa no meio da polícia / Ainda é cumprimentado / Se você vê o ladrão besta / Vive igual um bacurau / Não pode ouvir um alarme / Pensa que é o auau / Sai com a peste da carreira / Que é pra não morrer no pau” (O ladrão besta e o ladrão sabido, 1993).
É notório que o poder econômico tem grande importância na organização social, mas a soberania é do povo, não do segmento rico da sociedade, cujos interesses conflitam com os interesses gerais. A democracia se fundamenta na igualdade de direitos, de oportunidades, de atuação, de bem-estar social, de acesso à cultura, à educação, à saúde, à moradia, ao lazer. A democracia genuína é a realização de seres dignamente humanos, comprometidos com o bem-estar de todos, da partilha e não da competição.
Lamentavelmente, a geopolítica mundial foi mais influenciada pelos dissabores da guerra do que pelos sabores da diplomacia. Não existe a arte da guerra. Guerra é a falta de arte. Em todos os tempos, o desapreço à cultura é o sinal mais evidente do obscurantismo dos governantes. O poder censura, o saber liberta. Liberta com arte. “A arte seria uma simples álgebra de sentimentos e pensamentos se não fosse assim, e não teria ela, pelo poder de comover, que é um meio de persuasão, o destino de revelar umas almas às outras, de ligá-las, mostrando-lhes mutuamente as razões de suas dores e alegrias, que os simples fatos desarticulados da vida, vistos pelo comum, não têm o poder de fazer, mas que ela faz, diz e convence, contribuindo para a regra da nossa conduta e esclarecimento do nosso destino”, ressaltou Lima Barreto (1881-1922), na crônica lapidar Uma fita acadêmica (A.B.C., de 2/8/1919). Dialogando com a poética de Caetano Veloso, podemos atestar que os “podres poderes” são responsáveis diretamente pela pior das corrupções: a alienação diante da “dor e da delícia de ser o que somos”, o que nos impede de alcançar ainda o patamar da “felicidadania”.