Manipulação pela ciência
Tese mostra que discurso técnico de empresas e órgãos envolvidos nas reparações dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão funciona como instrumento de controle dos atingidos
A “ciência semicolonial”, que permeia os conflitos resultantes do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, em 2015, e, mais recentemente, em Brumadinho, caracteriza os laudos, relatórios, pareceres e o próprio discurso dirigido aos atingidos. Em vez de esclarecer ações e providências, eles acabam funcionando como “instrumentos de manipulação e controle por parte dos agentes responsáveis pelas partes envolvidas”.
A análise é feita pelo pesquisador Marcos Moraes Calazans, autor de tese defendida neste ano, na Universidade de Alicante, na Espanha, em regime de cotutela com a Faculdade de Educação. De acordo com ele, o debate sobre as causas do rompimento da barragem de Fundão e sobre o próprio processo de reparação dos danos e indenização dos atingidos tem suscitado explicações técnico-científicas. Durante mais de um ano, Calazans, que é professor do Departamento de Física da Universidade Federal de Ouro Preto, analisou relatórios, laudos técnicos e pareceres elaborados tanto pelas empresas Samarco, Vale e BHP quanto por órgãos públicos e diversas instituições, como o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) e o Ministério Público. Ele também acompanhou reuniões com os atingidos e liderou um projeto de extensão, no município de Barra Longa, onde colheu depoimentos e opiniões da população sobre o que entendia sobre o processo de mineração e o discurso científico apresentado pelas empresas.
“A atividade científica que permeia esse conflito está fortemente marcada pelas determinações econômicas da mineração, também característica da própria economia brasileira, tão dependente da produção de commodities e, que, por sua própria natureza, é uma típica atividade semicolonial”, afirma. A expressão semicolonialismo é definida pelo marxista peruano José Carlos Mariategui para caracterizar as pressões e coerções do capital financeiro e dos monopólios internacionais sobre as relações sociais, políticas e econômicas dos países da América Latina.
“Percebi que as práticas e o discurso científico utilizados pelas mineradoras passaram a ser instrumento para controlar as opiniões e estabelecer parâmetros de maneira que os atingidos não conseguiam entender e, muitas vezes, impor seus interesses no processo de reparação dos danos. A cientificidade do conflito foi usada como instrumento de manipulação e dominação, caracterizando-se como ciência semicolonial”, acrescenta.
Base conceitual
O pesquisador destaca quatro aspectos que caracterizam o semicolonialismo nesse conflito e utiliza os próprios documentos e situações ocorridas no decorrer do ano de 2016 para consubstanciar sua análise. O primeiro é o marco conceitual, que, segundo Calazans, configura-se pela série de conceitos introduzidos no Brasil, anteriormente ao rompimento da barragem, por meio de projetos financiados pelo Banco Mundial e por agências estrangeiras de capital financeiro. “Trata-se de ideias como governança, resiliência, mediação de conflitos e desenvolvimento sustentável, que, após o rompimento, foram fundamentais para estruturar certa concepção e a própria atividade científica do conflito.”
A expressão semicolonialismo é definida pelo marxista peruano José Carlos Mariategui para caracterizar as pressões e coerções do capital financeiro e dos monopólios internacionais sobre as relações sociais, políticas e econômicas dos países da América Latina.
O segundo é a epistemologia sistêmica semicolonial, expressa na concepção e na metodologia do Pensamento Sistêmico e Planejamento de Cenários, incorporado pela Samarco, que apresenta, entre outras coisas, uma ideia de complexidade das causas para o rompimento da barragem, impossibilitando a determinação de uma causa precisa. “As empresas usaram esse discurso para se desresponsabilizar pelo rompimento”, afirma Calazans.
Outro ponto é a estrutura orgânica, ou estrutura de governança, centralizada na Fundação Renova, que integra órgãos governamentais e de meio ambiente, por meio do Comitê Interfederativo (CIF), para reparação dos danos causados pelo rompimento de Fundão.
Marcos Calazans também cita a destituição, em dezembro de 2016, de um grupo de promotores do Ministério Público de Minas Gerais que havia ajuizado ação civil pública exigindo a retirada da lama de rejeito de Fundão no perímetro de Mariana. “Esses mesmos promotores que, durante 12 anos, trabalharam em defesa do meio ambiente em Minas Gerais também recomendaram que os órgãos públicos não aceitassem a volta das atividades da Samarco sem antes investigar melhor as condições de operação da empresa”, acrescenta ele, que identifica tentativas de resistência, especialmente por parte dos próprios atingidos. “No entanto, o sistema semicolonial também coopta os órgãos públicos”, ressalva Calazans.
O quarto aspecto, chamado por Calazans de cientificidade do crime, está relacionado às causas do rompimento da barragem de Fundão. Com base na análise de diferentes laudos e relatórios técnicos, Calazans concluiu que a causa principal e determinante do rompimento foi a velocidade de alteamento da barragem. “A literatura científica sobre segurança de barragens, bastante conhecida pela Samarco e suas acionistas, recomenda um alteamento anual desse tipo de barragem entre 4,6 e 9,1 metros. No entanto, essa premissa foi sistematicamente violada pelas empresas, que chegaram a elevar a barragem em 20 metros, apenas em 2011, e em 14,6 metros, em 2014”, afirma o pesquisador.
Tese: Ciência semicolonial: uma análise da cientificidade do conflito gerado pelo crime semicolonial da Samarco/Vale/BHP
Defesa: fevereiro de 2019
Orientadores: Antônio Julio de Menezes Neto (UFMG) e José Antônio Segrelles Serrano (Universidade de Alicante)