Boletim
Tijolo por tijolo
Ele tem fome de quê?
Trupe A Torto e a Direito, dirigida pelo dramaturgo Fernando Limoeiro, recorre à arte popular nordestina para dar voz a quem não tem
A arte como instrumento de mobilização, inclusão e transformação do ser humano arrebata Fernando Antônio de Melo desde a adolescência. Ator, diretor e autor, ele é professor do Teatro Universitário (TU) da UFMG desde 1986 e reside há mais de três décadas em Belo Horizonte.
Aqui, fincou suas raízes de Limoeiro – cidade do agreste de Pernambuco, em que cresceu e viveu o epicentro da efervescência cultural e artística das décadas de 60 e 70. De lá, trouxe a base cultural de sua formação como artista: o cordel, o teatro de bonecos, o circo, em especial, e os grandes mestres do teatro popular, como os dramaturgos Ariano Suassuna e Emílio Borba Filho.
O caldeirão de influências desse “pernamineiro” forjou o teatro político da trupe A Torto e a Direito. Em 1998, a convite dos professores Menelick de Carvalho Netto e Miracy Gustin, fundadores e ex-coordenadores do programa Polos de Cidadania, da Faculdade de Direito da UFMG, Limoeiro foi chamado a dirigir um grupo de alunos da Faculdade, que trabalhava com a estética do Jurisdrama.
“Nascemos com a missão de ser a ‘voz do Polos’ e fazer teatro popular de mobilização social”, afirma Fernando Limoeiro. O grupo foi então batizado com o nome A Torto e a Direito pelo crítico teatral Sábato Magaldi, por ocasião de seminário sobre a obra de Nelson Rodrigues realizado no Teatro Francisco Nunes, e consolidou as influências do teatro do oprimido, de Augusto Boal, e do teatro épico e político, de Bertolt Brecht.
O professor do TU acreditou que teria uma passagem breve por lá. “Inicialmente ficaria um ano. Mas o teatro popular e de mobilização me ‘obrigou’ a não ‘arredar o pé’. Já se passaram 23 anos”, conta, com orgulho, o professor de interpretação e improvisação. Para ele, “inusitado” explica sua longevidade no grupo que tem acompanhado e marcado sua carreira.
O mestre Limoeiro, como é carinhosamente chamado por seus alunos, afirma que “sempre teve vocação extensionista”. Ele contribuiu para a formação de vários grupos teatrais e de artistas, sobretudo os integrantes da trupe, que hoje têm, entre suas marcas, a transdisciplinaridade. O grupo reúne alunos dos cursos de Teatro, Direito, Psicologia e Ciências Sociais da UFMG. “Embora considere fundamental a formação acadêmica, eu acredito na máxima de que ‘teatro se aprende fazendo’”, diz o dramaturgo.
O excluído em cena
A trupe trabalha principalmente com duas linguagens do teatro popular nordestino: os esquetes circenses melodramáticos e o teatro de bonecos – que ganhou o nome de mamulengo Mandacaru sonhador. Ambas as linguagens têm o mesmo objetivo: problematizar temas complexos e sensibilizar criticamente grupos sociais em situação de exclusão. Os trabalhos tratam aberta e coletivamente de realidades vivenciadas nas comunidades, mas de uma maneira lúdica e cômica. “O riso é uma ‘arma’, e não abrimos mão dela. Ele tem a capacidade de ‘cortar sem sangrar’”, defende Limoeiro.
O diretor ressalta que o processo de criação deve levar em consideração o teatro como instrumento de inclusão e cidadania de pessoas que enfrentam situações de violação de direitos humanos. “O teatro é feito com elas, que se enxergam nas situações dramatizadas. Buscamos abordar seu ponto de vista, dando voz a quem não tem voz. O resultado disso, acrescenta, “é que realidade e ficção se misturam, e o espectador sai do espetáculo modificado e incentivado a enfrentar aquela realidade”.
As peças nascem de demandas identificadas pelos núcleos do Polos em comunidades, aglomerados, vilas e favelas da Região Metropolitana de Belo Horizonte e dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Por meio do diálogo e da compreensão dos problemas específicos de cada local, a trupe cria e monta as peças, que abordam temas como tráfico de drogas, violência, agressão contra a mulher, abuso sexual infantil e a situação de pessoas atingidas pelas atividades das mineradoras. Muitos esquetes são encenados nas próprias comunidades.
Por conta da pandemia e do isolamento social, o grupo foi impedido de realizar trabalhos presencialmente. No entanto, a trupe tem lançado mão das tecnologias para exibir esquetes em lives no Instagram. Atualmente, os artistas produzem a radionovela Histórias que a rua conta, que será disponibilizada para a população em situação de rua e nas plataformas e redes sociais.
Inspiração
Fernando Limoeiro revela que a origem de todo o seu trabalho como artista veio, sobretudo, da literatura de cordel. Mais precisamente da feira de Limoeiro, a qual frequentava, na adolescência, em companhia da mãe. Ali, via e ouvia o cordelista de bancada, “Manuel Sabe Lê”, que vendia cordéis próprios e de outros poetas. “Ele parava no meio da leitura e dizia: ‘quem quiser ouvir o resto, que compre o cordel'' ', recorda-se Limoeiro, que se sentiu provocado pelas performances do cordelista: “Que outra fome é essa que a poesia mata e transcende a fome física? O matuto analfabeto vem para cidade com parco dinheiro para comprar comida. Porém, faz questão de comprar e levar seu cordel”. Fernando Limoeiro quis, então, descobrir essa fome e matá-la. Não parou mais.