Boletim
Tijolo por tijolo
O campo enfrenta a pandemia
Pesquisadores, agricultores e estudantes de Montes Claros criam alternativas para compartilhar saberes e manter atividades
“A agricultura, a gente não pode desprezar! A agricultura é a vida nossa, a gente tem que incentivar, porque sem ela a vida não tem sentido nenhum”. A reflexão de João Francisco Gomes, agricultor e docente camponês do Sítio do Saluzinho, programa de extensão desenvolvido há nove anos no Instituto de Ciências Agrárias, em Montes Claros, pode ser interpretada como uma carta de princípios que orienta a iniciativa mesmo durante a pandemia de covid-19, que forçou a suspensão das atividades presenciais.
A iniciativa une ensino, pesquisa e extensão para compartilhar os valores e conhecimentos camponeses com estudantes do ensino fundamental do município. Desde 2013, o espaço recebeu cerca de sete mil estudantes de Montes Claros, número que corresponde a 25% das crianças matriculadas atualmente na rede pública de ensino do município. O Saluzinho, que ocupa dois hectares no campus regional da UFMG, recria a atmosfera de um sítio e o modo de vida camponês. Ao lado de João Gomes, outros agricultores, professores, alunos e técnicos da UFMG trabalham juntos, ministrando oficinas para estudantes.
A professora Flávia Galizoni, uma das idealizadoras do projeto, explica que ele funciona como um “museu vivo”, um centro de referência da cultura material da agricultura familiar. Suas atividades são gerenciadas pela equipe do Núcleo de Pesquisa e Apoio à Agricultura Familiar Justino Obers (PPJ). “O Núcleo é uma rede que articula professores, estudantes, profissionais e associações da sociedade civil vinculadas à agricultura familiar”, explica a professora. “Buscamos integrar pesquisa e extensão e unir o conhecimento acadêmico ao saber camponês”, completou.
Em Montes Claros, as aulas de educação básica estão sendo realizadas remotamente, como explica Cícera Pereira da Silva, diretora da Escola Estadual Dr. João Alves, onde estão matriculadas cerca de 800 crianças do 1º ao 5º ano do ensino fundamental. “A adaptação do presencial para o remoto não foi fácil, mas a parceria e os trabalhos precisam continuar. É importante para a escola o que a Universidade traz, pois seus conteúdos não são abordados nos livros didáticos”, afirma.
“A pandemia foi um grande baque, pois não queríamos perder o vínculo estabelecido presencialmente. Foi difícil para as escolas, para os acadêmicos bolsistas e voluntários e também para os camponeses”, destaca a diretora. A solução encontrada foi desenvolvida em conjunto entre as equipes da Universidade, os camponeses participantes do projeto e as escolas. Desde o fim de 2020, o projeto produz um boletim com informações, exercícios e curiosidades sobre agricultura familiar e vídeos que são repassados à escola para inclusão no conteúdo de rotina.
“Isso não se compara à visita, que é muito esperada por todos os estudantes, mas sabemos que, neste momento, ela não é possível. Os professores trabalham o boletim em uma aula. O conteúdo é visto dentro de alguma disciplina e alcança as famílias”, destaca Cícera.
Um dos mestres que compartilham os saberes tradicionais da cultura imaterial camponesa, João Gomes demonstra preocupação com o que considera excesso de tecnologia na vida das crianças. “Às vezes, não há estímulo para as crianças fora da tecnologia, e isso é ruim. Não sou contra a tecnologia, mas não podemos descartar o tradicional, o conhecimento e a prática”, enfatiza.
Pesquisa
Para analisar os efeitos da covid-19 sobre a agricultura familiar, o Núcleo PPJ iniciou, em 2020, projeto que alia pesquisa e extensão e busca analisar entraves vivenciados por agricultores e agricultoras do Vale do Jequitinhonha durante a pandemia. Já foram realizadas entrevistas para coleta de dados com representantes de agricultores familiares, gestores públicos e representantes de organizações da sociedade civil de dez municípios.
Ainda preliminares, os resultados da pesquisa já se configuram em três vertentes principais. A primeira mostra que grande parte do público participante do projeto é de baixa renda, tem dificuldade de acesso aos serviços de transporte e de telefonia e internet nas áreas rurais. A segunda é o fenômeno da migração de retorno para os locais de origem no período de pandemia, gerando pressão sobre os serviços de saúde e assistência social. Por fim, a terceira vertente indica a dificuldade do poder público municipal de propor ações e articular programas para atender às demandas da agricultura familiar e da população camponesa.
“O que percebemos é que as políticas públicas são fundamentais, principalmente aquelas que têm mecanismos de interseção com o ambiente local, pois a pandemia apresenta faces muito diferentes na cidade e no campo”, explica a professora Flávia Galizoni.
O projeto é apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e desenvolvido em parceria com o Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG), com o Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV) e com o Instituto de Trabalhadores e Trabalhadoras do Vale do Jequitinhonha (Itavale).