[Artigo] Juventude em conflito com a lei: entre o simbólico, o corpo e a subjetividade
Professoras analisam os diferentes sentidos associados à criança vulnerável ao longo da história legislativa brasileira
O genocídio da população jovem, masculina e negra é tema relevante que vem gerando ações nos campos das políticas públicas, das organizações sociais e no universo acadêmico, no Brasil. O incremento dos índices de mortalidade juvenil no Brasil e o aumento da população jovem encarcerada trazem uma série de interrogações à prática dos atores jurídicos e sociais envolvidos no trabalho preventivo e ressocializador das políticas públicas juvenis.
Por que apenas 6% da população jovem envolve-se no crime em regiões de alta concentração de criminalidade violenta? O que diferencia o jovem que adere daquele que não se integra a esse circuito criminal? Seriam condições genéticas, instintivas, predeterminadas? A nosso ver, não. Há um encontro de determinantes sociais objetivos e condicionantes subjetivos, entre outras variáveis econômicas e culturais relevantes, como já evidenciado por teorias ecológicas do crime, que concorrem para a consolidação desse cenário devastador.
Desde o Código Penal do Império Brasileiro, de 1831, até o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1992, diferentes sentidos associaram-se à criança e ao adolescente vulneráveis, dotando os termos jurídicos de carga semântica que ressoava no corpo social e no corpo jovem. Ao tempo do Império e do início da República, havia uma indistinção entre os menores perigosos e os abandonados, estando todos encampados indistintamente pelo mesmo texto legislativo referente aos adultos. Os menores eram nomeados como “irresponsáveis”, a partir do momento em que adquirissem a “capacidade de obrar com discernimento”. Essa era a diferença que se ressaltava entre adultos e menores.
Em 1937, com o Código de Menores, as crianças e os adolescentes foram distinguidos dos adultos, e a categoria discursiva do “menor” passou a ser tratada separadamente. Nesse sistema, nota-se evidente diferença de tratamento para a criança rica, futuro da nação, e para a criança pobre, objeto da lei. E, entre os menores de idade pobres, nova divisão nasceu entre os “abandonados”, a serem protegidos em grande parte pela filantropia religiosa, e os “vadios e libertinos”, que deveriam ser punidos e recuperados pelo Estado. É nesse momento que o termo “menor” passa a ser associado à delinquência e ao perigo.
A legislação reflete um discurso social mais amplo no interior do qual as leis de menores nascem vinculadas a um dilema crucial: satisfazer simultaneamente o discurso da piedade assistencial e as exigências mais urgentes de ordem e controle social. Sob a denominação menor, a não distinção entre abandonados e delinquentes é a pedra angular do princípio da situação irregular que arrasta sobre si toda sorte de desvio – da carência material ao abandono moral. Mesmo com a reforma do Código de Menores, em 1979, o termo “menor” é mantido, sustentando o preconceito e o temor social na representação da periculosidade associada a esse público jovem de baixa renda.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) institui nova doutrina, a da proteção integral, que, pela primeira vez na história legislativa brasileira, reconhece que toda criança e/ou adolescente pode ter seus direitos violados, devendo sempre ser protegidos, mesmo que tenham cometido ato infracional. A separação entre sanções e proteções no corpo dessa lei não implica sua separação na aplicação jurídica junto ao devido processo legal. Muito pelo contrário. Muitas vezes medida protetiva e medida socioeducativa são aplicadas concorrentemente no mesmo caso.
A passagem da categoria “menor” para a categoria “adolescente autor de ato infracional” representa um descolamento do qualificativo que agregava o “menor” ao perigoso, ao abandonado e ao criminoso, e que representava, ao mesmo tempo, o que precisava ser cuidado e o que já estava, de saída, condenado. O adolescente torna-se, desde então, autor de um ato que vai exigir uma reparação, uma restauração, inclusive das condições de violação às quais ele foi submetido. Sociedade e adolescente são implicados nesse processo.
Entretanto, instala-se aí um paroxismo que parece nos conduzir a uma cilada: se é renomeado pelo ECA como “adolescente autor de ato infracional”, é justamente por ser infrator que o jovem passa a ter seus direitos assegurados e protegidos pelo Estado. Assim, se ele deixa a situação de abandono a que a condição irregular o localizava, tornando-se autor de ato infracional, o jovem é, finalmente, inscrito no campo da proteção e/ou da socioeducação, mas também, no mesmo ato, no campo da discriminação e no da criminalização. Vemos um traçado simbólico que incide sobre o corpo e a subjetividade de cada adolescente.
Como romper com o estigma assim inscrito e com o destino criminal assim prescrito? Trata-se de tarefa complexa que será discutida durante o II Colóquio Internacional Adolescências e Leis e o X Seminário Clínico Adolescências em Tempos de Guerra, agendados para esta semana na UFMG.