Astrofísica da UFMG descobre planeta que orbita disco circunstelar de estrela jovem
Com massa similar à de Júpiter, ele se movimenta perto de uma estrela que evolui para se tornar, algum dia, um corpo celeste semelhante ao nosso Sol
Uma pesquisadora da UFMG acaba de descobrir um novo planeta num dos confins do nosso universo. O corpo celeste foi detectado orbitando no disco circunstelar de uma estrela T Tauri clássica, a GM Aurigae, em uma região de formação estelar situada a 521 anos-luz do Sol. Em suma: é longe. A responsável pela descoberta é a belo-horizontina Bonnie Zaire, residente de pós-doutorado no Departamento de Física do Instituto de Ciências Exatas (ICEx) da UFMG.
A novidade foi revelada no artigo Magnetic field, magnetospheric accretion, and candidate planet of the young star GM Aurigae observed with SPIRou (Campo magnético, acreção magnetosférica e candidato a planeta da estrela jovem GM Aurigae observados com SPIRou, em tradução livre). O paper foi publicado neste mês na revista Monthly Notices of the Royal Astronomical Society, do Reino Unido. A denominação dada ao planeta é GM Aurigae b – o nome da estrela que ele orbita mais a letra b.
A rigor, trata-se de um candidato a planeta. Isso porque, por convenção do campo científico, o termo “candidato” é usado para se referir a planetas detectados pela primeira vez, por meio de uma técnica específica. O termo “confirmado” só passa a ser usado a partir do momento em que o planeta é detectado novamente, por meio de novos dados, coletados com outro telescópio, seja pelo mesmo ou por outro pesquisador. Nesse caso, tanto os responsáveis pela descoberta quanto os que a confirmaram recebem os créditos correspondentes.
De acordo com o mapeamento feito por Bonnie Zaire, enquanto a estrela GM Aurigae tem o dobro do raio do nosso Sol, o planeta GM Aurigae b tem massa similar à de Júpiter. Mas, diferentemente do Júpiter do nosso Sistema Solar, aquele é um “Júpiter quente”, como os astrofísicos costumam dizer, já que o planeta se situa realmente muito próximo de sua estrela. (Para efeito de comparação, a distância entre o planeta descoberto por Bonnie e a estrela que ele orbita é cinco vezes menor que a distância que Mercúrio guarda em relação ao nosso Sol e doze vezes menor que a distância entre o Sol e a Terra.)
Entre os primeiros da história
Em toda a história da astrofísica, esta foi apenas a segunda detecção de um planeta ou sistema planetário orbitando uma estrela jovem com disco protoplanetário. A primeira ocorreu no fim da década passada. “A rigor, são 5.747 os planetas detectados até hoje, mas, entre todos eles, apenas três foram identificados nos estágios iniciais da formação planetária, que é quando a estrela [que o potencial planeta orbita] tem um disco de gás e poeira chamado de disco protoplanetário”, explica Bonnie.
O planeta detectado pela pesquisadora é um desses três. Os outros dois foram identificados conjuntamente, orbitando uma mesma estrela, a CI Tau. Por isso, a detecção de Bonnie é considerada a segunda da história e não a terceira (sobre essa primeira descoberta, leia mais aqui, aqui e aqui).
Em razão da relevância dos achados coligidos no artigo, ele servirá de base para o aprimoramento de teorias existentes e para a elaboração de novas teorias sobre o nascimento e a evolução de planetas. Bonnie agora planeja investir em pesquisas que confiram mais precisão aos parâmetros da sua descoberta – em especial, em relação à massa e à órbita do seu planeta.
“O objeto que eu estudo [a estrela GM Aurigae] é como se fosse um Sol bem jovem. Se o nosso Sol tem quase 4,5 bilhões de anos, essa estrela tem cerca de 1,5 milhão de anos – é uma diferença realmente muito grande. Então estamos falando de um estágio muito inicial do processo de formação de um Sol tal como o nosso Sol. Em razão disso, o trabalho que desenvolvemos tem o potencial de nos ajudar a compreender como o nosso Sol se tornou o que é hoje”, explica a pesquisadora. E, no limite, ajudar-nos também a inferir como ele seguirá se desenvolvendo.
A 'dança'
Para chegar à sua descoberta, Bonnie usou técnicas relacionadas à medição da velocidade radial (isto é, relacionadas à medição do movimento relativo que a estrela faz no sentido de se aproximar ou de se afastar do observador). Por meio delas, a pesquisadora pôde perceber que, em vez de fazer um giro perfeito em torno de si mesma, a estrela GM Aurigae de certa forma “dançava” em torno do seu centro.
Essa variação sugeria a hipótese de haver um corpo massivo no disco da estrela – um corpo com massa suficiente para que a força de atração da sua gravidade gerasse essa pequena variação na posição do astro maior. Era o planeta que ela descobriu.
A descoberta foi possível graças ao uso do SPIRou, um espectropolarímetro de infravermelho próximo (nIR) instalado no Telescópio Canadá-França-Havaí (CFHT). Esse telescópio funciona em um observatório situado no cume de um vulcão do Havaí, mais de 4 mil metros acima do nível do mar. Por sua localização estratégica (a alta altitude, o limpo céu havaiano, a ausência de poluição luminosa urbana etc.), ele tem servido muito a pesquisas relacionadas à busca de exoplanetas (planetas situados fora do Sistema Solar), tais como o descoberto por Bonnie.
Para a pesquisa e redação do artigo, Bonnie Zaire contou com colaboração de Silvia Alencar, professora do Departamento de Física do ICEx/UFMG e sua orientadora no pós-doutorado, e de pesquisadores da França, dos Países Baixos, da Hungria, de Taiwan, da República da Crimeia, da Alemanha e do Reino Unido. Todos integram o consórcio transnacional SPIRou Legacy Survey (SLS). Bonnie só pôde usar o SPIRou por integrar (desde 2018) esse consórcio e em razão de o Brasil ser um dos países subsidiários da construção do telescópio, também inaugurado naquele ano.
“O SPIRou é instrumento cuja construção foi liderada pela França, mas o Brasil teve uma participação realmente importante nessa construção tanto do ponto de vista financeiro quanto do ponto de vista científico. Ao todo, três instituições brasileiras participaram do projeto: a UFMG, o Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA) e a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)”, informa a pesquisadora. “Nesse sentido, o meu artigo é resultado desse investimento do país na ciência”, ressalta. A pesquisadora recorreu ao SPIRou para coletar e analisar espectros da estrela GM Aurigae de setembro de 2021 a janeiro de 2023.
Contrair para estabilizar
Estrelas T Tauri clássicas (as CTTSs, sigla que remete a Classic T Tauri Stars) são estrelas em desenvolvimento; no decorrer dos milhões e bilhões de anos, elas vão se contraindo “até que, em dado momento, ficam estáveis por vários bilhões de anos, chegando ao estágio em que o nosso Sol se encontra”, explica Bonnie.
Elas são assim classificadas “quando mostram evidências de acreção [acumulação] de matéria na superfície da estrela a partir de um disco circundante”, explica a pesquisadora no artigo. Discos circunstelares, por sua vez, são acumulações de matéria (gás, poeira, asteroides etc.) que se estabelecem ao redor das estrelas, formando uma espécie de panqueca ou anel.
Os discos circunstelares costumam ser classificados em três tipos, no que diz respeito à idade: “protoplanetário”, estágio em que o disco ainda concentra grandes quantidades de materiais primordiais (gás, poeira cósmica etc.), capazes de lhe conferir o potencial de formar planetas; “de transição”, quando os discos circunstelares já mostram uma redução significativa da presença desses materiais, e “de detritos”, cenário em que o material do disco já se converteu quase integralmente em poeira cósmica, com pouca ou nenhuma quantidade de gás – logo já não é mais berço de possíveis planetas.
Os discos circunstelares de estrelas jovens como as CTTSs tendem a ser protoplanetários, isto é: são locais privilegiados para o nascimento natural de planetas. Em razão disso, estudos relacionados a esse tipo de estrela, como o de Bonnie, têm sido cruciais também para o avanço da compreensão sobre a formação e a evolução dos planetas.
Apesar disso, até hoje, em toda a história da astrofísica mundial, ainda foram poucas as estrelas CTTS a terem o campo magnético caracterizado e planetas efetivamente detectados em seu disco, tal como fora feito no estudo de Bonnie.
Quem é Bonnie Zaire
Nascida em Belo Horizonte, Bonnie Zaire é graduada (2015) e mestre (2018) em Física pela UFMG e doutora (2021) em astrofísica pela Universidade Paul Sabatier, em Toulouse, na França. Sua dissertação de mestrado foi orientada pelo professor Gustavo Guerrero. Nela, Bonnie investigou a geração de campos magnéticos em estrelas com a mesma massa do Sol, mas com diferentes idades.
Ao final do mestrado, a pesquisadora queria aprender a técnica Zeeman-Doppler imaging (ZDI), que permite reconstruir, com base em dados observacionais, o campo magnético situado na superfície das estrelas. Como ainda não havia especialista no Brasil que dominasse o método, ela optou por cursar seu doutorado na França e trabalhar diretamente com Jean-François Donati, um dos inventores e líder mundial da técnica.
Após o doutorado, Bonnie recebeu da UFMG a bolsa Jovens Talentos, financiada pelo programa Capes-PrInt, para desenvolver seu projeto de pós-doutorado no Departamento de Física, no campus Pampulha. Impacto e evolução de campos magnéticos em estrelas do tipo solar é o trabalho que ela desenvolve atualmente, sob a supervisão da professora Silvia Alencar, também especializada na formação de estrelas e na interação disco-estrela.
Em breve, professora da UFMG
Como pós-doutoranda, Bonnie já tem contribuído na coorientação de duas teses de doutorado em andamento na UFMG. Em linhas gerais, esses trabalhos também abordam o magnetismo de estrelas jovens, área em que a pesquisadora está estabelecendo sua expertise. Ela foi aprovada no último concurso para docente do Departamento de Física da UFMG, e sua posse como professora adjunta deve ocorrer ainda neste ano.
Tendo a astrofísica estelar como campo preponderante de suas pesquisas, Bonnie atua principalmente na análise de estrelas por meio de espectroscopia e de espectropolarimetria de alta resolução, técnicas por meio das quais ela fez a descoberta descrita no artigo (elas possibilitam coletar dados referentes à velocidade radial). “Seus principais interesses incluem a reconstrução de campos magnéticos em grande escala na superfície estelar, o estudo de indicadores de atividade magnética e a busca de exoplanetas ao redor de estrelas jovens”, anota-se em seu currículo Lattes.
A espectroscopia diz respeito à observação das frequências de onda da luz, ou seja, à observação de como a intensidade da luz varia em razão da sua frequência de onda. O método é eficaz pelo fato de que cada estrela, em razão de sua massa, acaba tendo um espectro específico. A espectropolarimetria, por sua vez, coleta, além da informação da intensidade da luz, uma informação relacionada à sua polarização. Esse dado é particularmente importante porque a presença de um campo magnético faz a luz ser polarizada – logo, se a luz está polarizada em um modo específico, isso indica a presença de um campo magnético.
“Usando essa técnica, conseguimos medir o campo magnético das estrelas”, sintetiza Bonnie. A medição desse campo é um dos recursos utilizados na descoberta de planetas. “Em minhas pesquisas, de modo geral, tenho tentado entender como as correntes elétricas do plasma que está dentro das estrelas amplifica o campo magnético delas”, detalha. “Trabalho com observações, mas também com simulações”, conclui a nova professora da UFMG.