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Tema sensível e experiências silenciadas: aborto é abordado em novo episódio do ‘Outra estação’

Professoras da UFMG explicam por que a discussão pouco avança no Brasil; programa também ouviu mulheres que interromperam a gravidez

Pesquisa do Anis – Instituto de Bioética e da UnB estima que uma em cada cinco brasileiras com idade até 40 anos já realizou um aborto
Pesquisa do Anis – Instituto de Bioética e da UnB estima que uma em cada cinco brasileiras com idade até 40 anos já realizou um aborto Foto: Cottonbro | Pexels

No Brasil, o aborto provocado pela gestante ou por um terceiro é tipificado como crime desde 1940. Na redação original do Código Penal, já estavam previstas duas circunstâncias em que esse ato não é criminalizado: se a vida da mulher estiver em risco ou se a gravidez for resultado de um estupro. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela não criminalização em uma terceira circunstância: nos casos de anencefalia fetal. Desde então, pouca coisa mudou.

No episódio 92 do Outra estação, quatro professoras da UFMG ajudam a entender por que a discussão sobre aborto não avança no Brasil. Mulheres que passaram pela experiência de um aborto, legal ou ilegal, também aceitaram conversar com a equipe da Rádio UFMG Educativa.


O aborto como tabu

A doutora em Filosofia Telma Birchal, uma das entrevistadas do episódio, ressalta que a interrupção da gravidez não é um assunto polêmico no país. "Polêmico é aquilo que se discute. Se é polêmico, nós estamos discutindo, reconhecemos que há um problema que tem que ser resolvido. O aborto no Brasil é um tabu. Não se discute, não se fala", analisa a professora aposentada da UFMG.

Para Telma Birchal, o conservadorismo da sociedade silencia a história de mulheres que já realizaram aborto no Brasil.
Telma Birchal: conservadorismo da sociedade silencia a história de mulheres que já fizeram aborto no BrasilFoto: Francisco Starling

Telma Birchal afirma que o motivo de o aborto ser um tópico sensível para tantas pessoas tem relação com o fato de a sociedade brasileira ser ainda muito conservadora, o que faz histórias e relatos serem silenciados, como o de Carla, nome fictício usado para preservar a identidade de uma das mulheres que falaram ao programa sobre suas experiências de aborto clandestino. Ela conta que não tinha condições financeiras para fazer um procedimento seguro e tentou, por mais de uma vez, interromper a gravidez usando remédios. Carla, que tinha acabado de se formar na faculdade, conseguiu o contato de uma enfermeira para ajudá-la. "Eu tive, praticamente, que passar por uma cirurgia sem anestesia para fazer esse aborto. Foi muito dolorido, mesmo, muito agressivo. E isso acabou gerando vários traumas", relata.

Marcos no Judiciário

Em 2016, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu habeas corpus a três médicos acusados de formação de quadrilha e de operar abortos clandestinos. Os magistrados argumentaram que a criminalização do aborto até o terceiro mês de gestação é incompatível com os direitos sexuais, reprodutivos e com a autonomia e a igualdade da mulher, além de afetar a integridade física e psíquica da gestante. 

Em outubro de 2022, a Segunda Turma do STF rejeitou o pedido de interrupção da gestação de uma grávida de gêmeos siameses. Na ação julgada, a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul argumentava que, segundo os médicos, os fetos não tinham potencial de viver fora do útero e citava danos à saúde da gestante. Havia ainda o pedido de que a mulher não fosse criminalizada caso o aborto fosse realizado. A Segunda Turma, em sua maioria, entendeu que o caso ainda não foi esgotado nas instâncias anteriores, o que vedaria a atuação do STF. 

Segundo Juliana Cesario Alvim, alguns ministros do STF se apegam à questão procedimental para evitar discutir o tema.
Juliana Cesario Alvim: ministros do STF se apegam à questão procedimental para evitar discutir o tema
 Foto: acervo pessoal

A docente da Faculdade de Direito da UFMG Juliana Cesário Alvim, professora visitante na Central European University, explica que, na decisão deste ano, os ministros se ativeram à questão procedimental. "Esse é um artifício que existe e que a literatura identifica também como mecanismo que o tribunal ou alguns de seus ministros usam para não ter de lidar com a questão do aborto", diz Alvim, que também é coordenadora da Clínica de Direitos Humanos da UFMG.

Quanto vale a vida dessas mulheres?

O Outra estação também traz a história de Viviane [nome fictício]. Ela era uma jovem universitária quando engravidou, mesmo tendo tomado a pílula do dia seguinte. Sem apoio da família e do pai da criança, e também porque não queria ter filhos, Viviane tentou interromper a gestação com um medicamento comprado de forma ilegal. "Foi uma das piores experiências da minha vida. Fiquei umas cinco horas em um estado de muita dor. Foi muito traumático, horrível, muito inseguro. Foi muito dolorido, emocional e fisicamente", relata.

Além das questões de saúde mental, o aborto clandestino põe em risco a vida de meninas e mulheres no Brasil. A professora do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da UFMG Sara de Pinho Cunha Paiva informa que as complicações de um aborto clandestino podem ser várias, entre infecções, hemorragia e perfurações de órgãos, e que, se não tratadas de maneira correta, podem levar a morte. 

A professora Sara, que está à frente do Serviço de Atendimento à Vítima de Violência Sexual do Hospital das Clínicas da UFMG e da Unidade de Saúde da Mulher do HC, avalia que mulheres com direito ao aborto previsto em lei também são expostas aos riscos de um procedimento clandestino. Isso porque a maioria das meninas e mulheres que sofrem violência sexual e engravidam não sabem que têm o direito de solicitar a interrupção legal da gestação sem a necessidade de fazer um boletim de ocorrência. "Isso impede que muitas delas busquem o atendimento público que vai favorecer a interrupção daquela gestação", explica Sara Paiva.

Segundo a professora Sara de Pinho Cunha Paiva, a falta de informação deixa meninas e mulheres vulneráveis ao aborto clandestino.
Sara Cunha Paiva: falta de informação deixa mulheres vulneráveis ao aborto clandestinoFoto: acervo pessoal

Segundo dados do Ministério da Saúde, foram realizados, em 2021, 2.029 abortos legais no Brasil. Até outubro de 2022, foram registrados 1.284 procedimentos autorizados.

Discussão política

Segundo levantamento do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), de janeiro de 2021 a 29 de junho de 2022, 13 novos projetos de lei relacionados ao tema foram apresentados na Câmara dos Deputados. Apenas um é favorável à ampliação do direito à interrupção da gravidez. 

Sobre essa discussão política, Marlise Matos, professora do Departamento de Ciência Política da UFMG e coordenadora do Núcleo de Pesquisas e Estudos sobre a Mulher (Nupem) da Universidade, defende que, para a discussão avançar, é preciso considerar que a vida das mulheres precede qualquer outra vida e que elas têm o direito de tomar decisões autonomamente sobre os seus próprios corpos. "Elas têm, sobretudo, direito à sua privacidade, de tomar decisões sem serem retaliadas publicamente por nenhum fundamentalista religioso. Cada um tem sua religião, e a laicidade do Estado é o único princípio que preserva essa liberdade de expressão de credo religioso. Quem é orientado religiosamente não é obrigado a realizar uma prática de aborto", argumenta Marlise Matos. 

Para saber mais

Pesquisa Nacional de Aborto 2016
Norma Técnica Atenção Humanizada ao Abortamento do Ministério da Saúde
1ª Turma afasta prisão preventiva de acusados da prática de aborto
2ª Turma nega autorização de aborto a grávida de gêmeos siameses
O que os dados nacionais indicam sobre a oferta e a realização de aborto previsto em lei no Brasil em 2019?

Produção

O episódio 92 do Outra estação é apresentado por Alicianne Gonçalves e Luisa Marques. A produção é de Alicianne Gonçalves, Joabe Andrade e Luisa Marques, e a edição, de Alessandra Ribeiro. Os trabalhos técnicos são de Cláudio Zazá.

Nesta temporada, o Outra estação vai ao ar mensalmente. O próximo episódio estreia na primeira quinta-feira de dezembro, às 18h, na 104,5 FM, e a reprise vai ao ar na sexta-feira, às 7h. Todos os episódios também ficam disponíveis nos aplicativos de podcast, como o Spotify.