É preciso ouvir os povos tradicionais, afirmam líderes no Festival de Verão
Maria Goreth, da comunidade dos Arturos, frei Gilvander, da Pastoral da Terra, e a deputada Célia Xakriabá conversaram sobre resistência no último dia do evento
A comunidade dos Arturos, localizada na área urbana de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, foi fundada há 134 anos, é reconhecida internacionalmente e leva para a cidade milhares de visitantes todos os anos, mas ainda não detém os títulos de suas terras. Essa situação, em nada diferente da esmagadora maioria das comunidades quilombolas em todo o país, foi usada pela professora Maria Goreth Heredia Luz, uma das líderanças dos Arturos, como exemplo dos motivos que movem a luta constante do povo quilombola, em conversa nesta sexta, 3, que integrou a programação do 17º Festival de Verão da UFMG.
O encontro, realizado no Conservatório UFMG, encerrou a série de debates sobre memória e cultura e teve como mote “resistência e retomada”. Goreth esteve acompanhada do frei Gilvander Luiz Moreira, assessor da Comissão Pastoral da Terra de Minas Gerais, e da deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG).
“Somos filhos da resistência. Nossos ancestrais foram mortos em nome do anseio por liberdade, vida digna e direitos. E essa luta não tem fim”, afirmou Maria Goreth, que é historiadora e uma das rainhas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Ela acrescentou que o Brasil “não sabe que é indígena e afrodescendente”. “A vida tem se tornado insignificante. Os corpos negros, indígenas, LGBT+ precisam ser defendidos por nós, unidos, porque temos essa sensibilidade”, ela disse.
Maria Goreth ressaltou a importância das políticas públicas em apoio às comunidades quilombolas, porque “não é fácil manter os jovens engajados nas tradições, e também precisamos mostrar a eles que podem fazer um curso superior”.
Formada por 113 famílias que dividem o território e outras 115 que vivem fora dele, a comunidade dos Arturos tem apenas sete pessoas com formação superior. De acordo com a líder da comunidade, os jovens que voltam graduados têm papel de protagonismo e passam a coordenar projetos em diferentes áreas que sempre foram conduzidos por pessoas de fora. “Hoje nós mesmos fazemos nossas reflexões, o que nos ajuda a resistir contra a dominação e a falta de entendimento de quem tem o poder e também a vencer o racismo”, disse Goreth.
‘Mentira que mata’
Doutor pela Faculdade de Educação da UFMG com tese sobre a “luta pela terra como pedagogia da emancipação humana”, frei Gilvander iniciou sua exposição contando parte da própria história de vida. Até a adolescência, ele trabalhou de sol a sol, no noroeste de Minas Gerais na condição, em suas palavras, de “escravizado por latifundiários”. “Faço parte do povo camponês, que, junto com os povos originários, quilombolas e de outras comunidades tradicionais, é sobrevivente dos 523 anos da história do Brasil”, ele disse.
Gilvander lembrou que o cerrado era o paraíso, livre da fome, farto de frutas e mel, e hoje está dominado por monoculturas e “produz feijão envenenado”. “Os povos tradicionais são tratados como jecas, idiotas e atrasados por pessoas da cidade que se acham melhores. Isso é mentira, e essa mentira mata. Se não tivermos a humildade de ouvir e seguir as comunidades tradicionais e o campesinato, continuaremos sendo empurrados para o matadouro.”
Dono de larga experiência em atuação ao lado dos trabalhadores sem-terra, Gilvander Moreira afirmou que Minas Gerais abriga mais da metade da monocultura de eucalipto do Brasil e que a mineração está “sepultando a mãe natureza” e adoecendo populações como a de Brumadinho (MG), afetada pela contaminação por metais pesados. “Quilombolas, indígenas e camponeses podem mostrar o rumo certo para a resistência e para que haja condições de continuar respirando neste planeta.”
‘Nós somos o meio ambiente’
“Não dá para avançar nos direitos se não tocarmos na questão fundiária”; “reconhecer a importância dos territórios indígenas é fundamental para a combater a emergência climática”; “nós somos o próprio meio ambiente”. Com velocidade e fluência espantosas, Célia Xakriabá profere frases fortes que se encadeiam à perfeição para passar seu recado em poucos minutos. Última a expor suas ideias no encontro do Festival de Verão, a primeira deputada federal indígena eleita por Minas Gerais disse que seu mandato é “interterritorial, estadual e nacional”. E que é preciso cuidar não apenas da floresta amazônica, mas também do cerrado e da mata atlântica.
“É preciso retomar, em nosso estado, o sentido de ‘águas gerais’, ‘montanhas gerais’”, ela enfatizou. Doutoranda em antropologia social na UFMG, Célia Xakriabá criticou a mania do que chama de “comoção momentânea” suscitada por tragédias como a do povo ianomâmi, em Roraima, e por novas ameaças como a das mineradoras contra a Serra do Curral, localizada em Belo Horizonte e cidades próximas. “Por causa da expectativa pelas sirenes que anunciam queda de barragens, as pessoas, em muitas comunidades, não são mais vistas sorrindo. A ameaça da mineração entra na cabeça das pessoas”, disse a líder indígena.
Célia contou que tem repetido “todos os dias” no Congresso Nacional que o conceito de direito alimentar não se refere apenas à possibilidade de comer, mas também à garantia de “não ser envenenado por alimentos produzidos com agrotóxicos”. “As leis têm sido criadas para nos matar. Nós temos que ser ouvidos, os povos tradicionais têm a sabedoria, e cada liderança derrubada mata parte do Brasil”, afirmou a parlamentar.
'De forma que caibam todos'
Em resposta a questão posta pelo jornalista Marcílio Lana, moderador da conversa, os líderes disseram como veem o papel da universidade no apoio à luta dos indígenas, quilombolas e camponeses. Maria Goreth afirmou que “é triste que outros grupos pensem por nós na hora de fazer leis e políticas”. Para ela, as universidades devem elaborar currículos e prover estrutura “de forma que caibam todos”.
Frei Gilvander defendeu que, assim como devem ser derrubadas as cercas dos latifúndios, é necessário também eliminar “as cercas da educação”. Exaltou o espaço aberto pela Faculdade de Educação da UFMG para pessoas indígenas – por meio, por exemplo, da Formação Intercultural de Educadores Indígenas – e alertou para uso de saberes acadêmicos para avalizar interesses, por exemplo, das empresas que investem apenas numa monocultura nociva. “Esses acadêmicos são cúmplices da opressão, e seu saber gera morte”, sentenciou.
Para Célia Xakriabá, a universidade, como outras instituições, precisa “romper com o racismo da ausência”. “Fui a primeira indígena no doutorado na UFMG, e me senti muito solitária”, contou. “Nós temos a sabedoria, e nossa presença é fundamental para ‘aquilombar’, ‘indigenizar’ a academia.”