José Carlos Novaes da Mata Machado: presente!
Estudante da UFMG morto pela ditadura é homenageado na Faculdade de Direito e na ALMG; memória de outros jovens que militaram pela liberdade também foi reverenciada
Morto pela ditadura há exatos 50 anos, o líder estudantil José Carlos da Mata Machado foi homenageado na Faculdade de Direito, sua alma mater, e na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Na UFMG, o tributo ao ex-diretor do Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP) e ex-vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) foi realizado na manhã desta sexta-feira, dia 27, durante a abertura do seminário Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, na Sala da Congregação.
A reitora Sandra Regina Goulart Almeida defendeu a necessidade de disseminar histórias de luta como a de Mata Machado. “São muitas as histórias que nós temos de trazer”, disse a reitora, lembrando os nomes de outros estudantes da Universidade assassinados pela ditadura, como Gildo Macedo Lacerda, Walkíria Afonso Costa e Idalísio Soares Aranha Filho (os três, além do próprio Mata Machado, são homenageados em memorial instalado pela Universidade no campus Pampulha), e João Batista Franco Drummond, outro estudante recentemente homenageado na Faculdade de Ciências Econômicas. “Temos de contar, recontar, contar de novo. As novas gerações muitas vezes não conhecem a história dessas pessoas que lutaram por um país melhor, a favor da democracia; uma história de tanta dor, tanto sacrifício”, lembrou.
“Rememorar é uma forma de resistir não só ao que vivemos no passado distante, mas também ao que vivemos em um passado recente”, acrescentou a reitora. “A gente pensa muito na afronta à democracia da época da ditadura – que foi, de fato, um momento histórico terrível do país e da nossa instituição –, mas também precisa lembrar que muito recentemente a gente sofreu com novas afrontas à democracia e aos direitos humanos, afrontas de que não se pode esquecer nunca. Também por isso, momentos como este são tão importantes para todos nós”, disse.
Justiça de transição
A mesa de abertura do seminário foi mediada por Marcelo Cattoni, professor da Faculdade de Direito. Em sua fala, ele celebrou a retomada, no Brasil, da agenda de pesquisa e de atuação em prol de uma verdadeira justiça de transição – processo que, segundo ele, ficou estacionado durante os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Cattoni destacou a importância do trabalho desenvolvido pelo pesquisador Emilio Peluso Neder Meyer (mais tarde, admitido como professor da Universidade) na tese Responsabilização por graves violações de direitos humanos na ditadura de 1964-1985: a necessária superação da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF n° 153/DF pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Defendida em 2012, a pesquisa de Emilio Peluso recebeu no ano seguinte o Prêmio Capes de Tese, na área de Direito, e o Grande Prêmio UFMG de Teses, na grande área de Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas e Linguística, Letras e Artes. Em seu trabalho, Peluso avalia ser um equívoco jurídico a decisão tomada em 2010 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de se usar a Lei da Anistia para impedir que agentes do Estado sejam punidos por crimes cometidos durante a ditadura.
A mesa do seminário contou ainda com a participação da doutoranda Júlia Guimarães, coordenadora do evento, que é orientada por Cattoni, Monica Sette Lopes, vice-diretora da Faculdade de Direito, Eduardo Soares Neves Silva, pró-reitor adjunto de Pós-graduação, e Osvaldo Capelari, presidente do Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP), instituição outrora presidida por Mata Machado. Em sua fala, Capelari lembrou que o homenageado é o nome mais evocado hoje no âmbito do CAAP – talvez até mais que o de Afonso Pena, registrou o estudante. “Isso porque ele baliza e inspira as nossas lutas de uma forma diferente. Para nós, ele é a personificação da luta contra a ditadura”, disse Capelari, relembrando momentos em que, sentindo-se inseguros em situações de militância, os membros do CAAP evocaram a memória de Mata Machado para resistir.
O pró-reitor Eduardo Neves participou da mesa não em razão do seu cargo institucional, mas por integrar a família do homenageado. Ele pautou sua fala na lembrança de uma foto em que, criança, aparece sentado no colo de Mata Machado – talvez a última foto feita dele em vida. A imagem, disse Neves, o fez pensar em um paradoxo da justiça: o de que ela sempre se segue ao sofrimento, seja com retribuição, restauro ou transição. “Haveria de ser de outro modo?”, perguntou, retórico, o professor do Departamento de Filosofia. “Seria possível não haver mais sofrimento na história, e, por isso, não ser mais necessário pensar em justiça? Um pouco por conta do que, por ofício, eu li ao longo da vida, tendo a dizer que é necessário ao menos tentar puxar o freio de mão da história”, disse.
“É possível um mundo sem sofrimento?”, insistiu o professor. “Suponho que sim, [mas apenas] se fizermos uma distinção entre dor, que é uma condição, e sofrimento, que é um resultado. Puxando pela memória, eu me lembro de uma frase do [escritor francês] Léon Bloy, que tantas vezes foi associada à história do Zé: ‘sofrer passa, ter sofrido não passa nunca’. É, pois, como desejo de que ao menos esse sofrimento específico nunca mais resulte – para que não nos esqueçamos; para que nunca mais se repita”, encerrou.
Sonhos vários
“Nos últimos anos, tenho reiteradamente ouvido a palavra sonho – assim, no singular, mas também no plural, ‘sonhos’. Ao escutá-las, sempre reagi com ironia – às vezes, com sarcasmo. ‘Sonhos? Sonhos eu tenho dormindo. Desperto, o que tenho são objetivos’. No entanto, ao refletir sobre o que falaria nesta noite, concluí que a palavra sonho é cabível para se referir àqueles objetivos que são muito difíceis de alcançar. Assim, hoje, quero expressar alguns desses sonhos.
Sonho com a abertura de todos os arquivos ainda secretos sobre a repressão aos homens e às mulheres que militaram no combate à ditadura militar, a fim de dar às famílias e ao público em geral o conhecimento das circunstâncias da prisão, da morte e do destino dos corpos de muitos deles e delas. Sonho que ciosos servidores públicos, guardiães desses arquivos, não se furtarão às suas obrigações para com a memória e a história do Brasil.
Sonho que, inspirado nos tratados, nos pactos, nas convenções, nas declarações e nas recomendações internacionais sobre Direitos Humanos, o Supremo Tribunal Federal reveja a sua decisão sobre a constitucionalidade da Lei da Anistia e abra caminho para o julgamento e a punição daqueles que perpetraram crimes contra a humanidade – particularmente, a tortura e o homicídio.
Sonho que as Forças Armadas do Brasil, inspiradas em uma antiga tradição que entende serem os exércitos a expressão do povo em armas, abandonem a famigerada tese do inimigo interno e nunca mais voltem as suas armas para massacrar gente do seu próprio povo. E sonho que essas mesmas forças armadas, imbuídas de respeito ao povo brasileiro, peçam desculpas a todo o país – em particular, às famílias das vítimas – pelos crimes que cometeram durante a chamada ‘guerra suja’.
Por fim, sonho que aqueles que lutaram e morreram em razão desses crimes sejam reconhecidos pelo Congresso Nacional como heróis do povo brasileiro e, em consequência, que seus nomes sejam inscritos no panteão da pátria, ao lado de nomes como Anita Garibaldi, Chico Mendes, Clara Filipa Camarão, Frei Caneca, João Pedro Teixeira, Luís Gama, Tiradentes, Zumbi dos Palmares e Zuzu Angel.”
Com essas palavras, Bernardo da Mata Machado homenageou o irmão José Carlos Novaes da Mata Machado em solenidade na ALMG, na noite desta quinta-feira, 26 (a íntegra do evento está disponível no canal da ALMG na plataforma YouTube). Na presença de vários parentes – filhos, irmãs, a viúva e o cunhado – e amigos do militante, Bernardo recebeu dos legisladores uma placa em homenagem àquele que é considerado “um dos mais ilustres acadêmicos da Faculdade de Direito da UFMG”. Nela, afirma-se: “A democracia é o grande pilar sustentador das liberdades.”
A comenda foi sugerida pelo ex-deputado federal Nilmário Miranda, atual assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, e encampada pela vice-presidente da ALMG, a deputada Leninha, no âmbito de uma série de homenagens programadas para esta semana, em que se completaram 50 anos da morte do estudante. Nilmário resumiu o sentido do evento: “O significado é esse: nunca mais. Nós temos de fazer um compromisso definitivo com a democracia, para que uma pessoa como Zé Carlos – um dos mais brilhantes de sua geração – não tivesse sofrido o que ele sofreu. É dizer: que nunca mais aconteça.”
O deputado Cristiano Silveira, que presidiu a sessão em nome do deputado Tadeu Martins Leite, presidente da Casa, lembrou: “O Estado brasileiro reconheceu a sua responsabilidade pelas mortes e pelos desaparecimentos [ocorridos na ditadura]. Nesse sentido, lembrar José Carlos da Mata Machado nos 50 anos do seu martírio – no Legislativo, que alcançou seus 200 anos recentemente – é prestar homenagem à democracia, à memória e à verdade. Que ninguém mais passe pelo que passaram Edgard e dona Ieda [pais do estudante assassinado].”
As homenagens a Mata Machado prosseguem neste sábado, 28, data de sua morte, com a exibição do filme Zé, do cineasta Rafael Conde, professor da Escola de Belas Artes (EBA), no Cine Santa Tereza, às 10h30. O longa-metragem narra os últimos anos de sua trajetória e sua relação com a militância, a esposa, os filhos e demais familiares.
Síntese de uma luta
Filho de Yedda Novaes da Mata Machado e do jurista Edgard de Godoi da Mata Machado, que foi professor da Faculdade de Direito da UFMG, José Carlos Novaes da Mata Machado nasceu na cidade do Rio de Janeiro no dia 20 de março de 1946. Aluno do curso de direito da UFMG, ele “foi uma grande liderança do movimento estudantil em Belo Horizonte, sendo presidente do Centro Acadêmico Afonso Pena, da Faculdade de Direito da UFMG, e vice-presidente da UNE”, conforme reporta o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Amigo e companheiro de organização política do também estudante da UFMG Gildo Macedo Lacerda, José Carlos foi morto junto com ele, sob intensa tortura, nos porões do DOI-Codi de Recife.
Em seu pronunciamento na ALMG, Nilmário Miranda relembrou a história dos dois – assim como a história da farsa contada pelo Exército brasileiro sobre a circunstância dessas mortes, supostamente ocorridas num confronto com um terceiro membro da militância estudantil. Desmentida posteriormente, a história havia sido inventada para também ocultar as circunstâncias da morte desse terceiro homem – episódio que ficou conhecido como “Teatro de Caxangá”, dado o seu caráter fantasioso. Todos esses fatos estão detalhados no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV).