Sereias do estuário
Em artigo de professores da UFMG, população de peixes-bois híbridos é apontada como referência para a preservação do ambiente marinho formado pela pluma do rio Amazonas
As regiões onde a água doce dos rios se mistura à salgada dos oceanos são definidas pela literatura científica como “estuários”. Atualmente ameaçada pela exploração de petróleo e de outros minerais, a porção do Oceano Atlântico que se estende da foz do Rio Amazonas até a costa das Guianas foi identificada como o habitat de animais híbridos que mesclam características funcionais e morfológicas do peixe-boi marinho (Trichechus manatus) e do peixe-boi amazônico (Trichechus inunguis), frutos do cruzamento entre essas duas espécies.
“Eles têm adaptações genéticas para viver em ambientes estuarinos, ecossistemas cuja preservação costuma ser negligenciada”, observa o professor Fabrício Rodrigues dos Santos, sobre os animais que foram comparados às mitológicas sereias no diário de bordo de Cristóvão Colombo, quando o navegador chegou à América no século 15. Por conta disso, essa ordem de mamíferos herbívoros, da qual faz parte o peixe-boi, é chamada de Sirenia.
Docente do Departamento de Genética, Ecologia e Evolução do ICB, Fabrício Santos coordenou equipe de pesquisadores da UFMG, da Alemanha e da Guiana Francesa (França). Eles investigaram características genéticas de peixes-bois encontrados ao longo de extensa zona híbrida sob influência da pluma do rio Amazonas (coluna de água doce que flui dentro do oceano). “Até então, havia poucos dados sobre essa população, que existe há muito tempo e é formada praticamente só por híbridos. Isso reforça a necessidade de proteger esse ambiente peculiar”, explica o pesquisador, que, desde 2016, é assessor do Plano de Ação Nacional (PAN) para a conservação do peixe-boi marinho, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente.
Até então, havia poucos dados sobre essa população, que existe há muito tempo e é formada praticamente só por híbridos. Isso reforça a necessidade de proteger esse ambiente peculiar.
O estudo resultou no artigo Manatee genomics supports a special conservation area along the Guianas coastline under the influence of the Amazon River plume, publicado no periódico Estuarine, Coastal and Shelf Science, revista multidisciplinar dedicada à análise de fenômenos aquáticos dos estuários, zonas costeiras e mares de plataforma continental. “No trabalho, propusemos a preservação dessa área como um produto único da natureza, onde também transitam outras espécies adaptadas ao estuário – algumas, inclusive, endêmicas”, justifica.
Pela primeira vez, foi registrada a presença de um peixe-boi amazônico em um rio da Guiana Francesa – fora, portanto, da Bacia Amazônica. Essa área costeira compreende o Amapá e a foz do Rio Amazonas (Brasil), Guiana Francesa, Suriname e Guiana, onde se encontram os peixes-bois híbridos.
Extinção
Fabrício Santos esclarece que os peixes-bois amazônico e marinho são facilmente distinguíveis. No primeiro caso, o animal é preto, com o ventre branco. Sem unhas ou pelos no corpo, tem modificações na dentição que possibilitam se alimentar de plantas aquáticas. O peixe-boi marinho, por sua vez, é homogeneamente cinzento ou marrom, tem unhas e pelos e é adaptado ao ambiente marinho. Alimenta-se de gramas marinhas e plantas de estuários.
Os peixes-bois marinhos nativos do Brasil, de acordo com os estudos do grupo da UFMG, são bem diferentes dos que habitam o Hemisfério Norte, tanto na morfologia quanto no DNA. “A zona híbrida também separa as populações de peixe-boi marinho do Brasil das demais, o que é importante, portanto, para a preservação dos animais que ocorrem em nosso litoral”, argumenta. Segundo Fabrício Santos, estima-se que ainda restem, no máximo, cerca de mil peixes-bois marinhos na costa brasileira. “O último registro no Espírito Santo ocorreu na década de 1960, e a espécie também já foi extinta na Bahia e no Sergipe”, informa.
De acordo com o professor, esses e outros dados serão discutidos nas próximas reuniões do PAN, a fim de se fomentar estratégias de preservação. “A exploração de petróleo nas imediações da foz do rio Amazonas pode gerar consequências negativas para esse ecossistema. Por isso, é importante estudar o local e suas espécies”, alerta.
Seleção natural
Para o pesquisador, investigações futuras deverão buscar sinais de seleção natural em todo o genoma das espécies puras e dos híbridos, o que pode fornecer pistas sobre as adaptações genéticas que podem favorecer a existência dos híbridos nessa zona costeira. “Se o ecossistema formado pela pluma do rio Amazonas realmente influencia a distribuição populacional de muitas espécies, um programa regional de conservação deve ser elaborado, com ênfase na preservação desse ambiente aquático único”, afirma.
Artigo: Manatee genomics supports a special conservation area along the Guianas coastline under the influence of the Amazon River plume
Autores: Camilla Lima, Camila Mazzoni, Fabrício Rodrigues dos Santos e Benoit de Thoisy, da UFMG, e Sibelle Vilaça, da Trent University (Canadá)
Disponível no site Science Direct.