Boletim
Tijolo por tijolo
Angicos vive
Faculdade de Educação programou várias atividades para celebrar o centenário de Paulo Freire; especialistas analisam a sua obra e a experiência de alfabetização de adultos no Rio Grande do Norte
Se Paulo Freire é considerado um dos mais notáveis educadores do mundo, a imagem mais exemplar do seu pensamento é o revolucionário método de alfabetização de adultos que desenvolveu. Ele se baseia, entre outras coisas, em aulas focadas em “situações-problema”, nas quais são estimulados a participação e o posicionamento crítico do educando, de modo que o adulto se educa mediante a discussão de suas experiências de vida com outros indivíduos que partilham dessas mesmas vivências ou de outras semelhantes.
O método foi adotado em Angicos, no Rio Grande do Norte, nos primeiros anos da década de 1960, por meio de convênio realizado entre universidade e Estado. Na ocasião, cerca de três centenas de trabalhadores rurais e seus familiares – todos de baixa renda ou mesmo sem renda alguma – foram alfabetizados em cursos de 40 horas, em apenas 45 dias. O trabalho foi coordenado pelo próprio Paulo Freire, que, em razão do sucesso dessa experiência pioneira, foi convidado pelo governo brasileiro a repensar a alfabetização de adultos em âmbito nacional.
Pouco tempo depois, cairia sobre o país e sobre a campanha nacional de alfabetização de João Goulart a ditadura civil-militar (1964- 1985), que puniria as experiências de Paulo Freire e muitos dos seus participantes e levaria o próprio educador à prisão e ao exílio. No momento de uma particular coincidência – em que as perspectivas de uma educação pública, gratuita, de qualidade e libertadora do país são novamente ameaçadas –, comemora-se o centenário de Paulo Freire, que será completado no dia 19 de setembro.
Em janeiro, a direção da Faculdade de Educação (FaE) instituiu comissão para coordenar as celebrações na Universidade. “Ela é composta de professores, servidores técnico-administrativos e estudantes. Por meio dela, temos procurado canalizar e articular diversas atividades neste ano”, explica a professora Lúcia Helena Alvarez Leite, uma de suas integrantes. “De imediato, temos trabalhado, sobretudo, com ‘círculos de cultura’ mensais [webinários inspirados no modo de “aula” de Paulo Freire]. Dois já foram realizados neste ano. Também temos participado de lives e debates, buscando socializar o pensamento do Paulo Freire com o público em geral, e organizado as ‘pílulas freireanas’, pequenas atividades culturais relacionadas à sua obra”.
As atividades realizadas pela comissão são divulgadas no site da Faculdade de Educação, na aba relativa ao centenário do educador. Lá, por exemplo, há informações sobre uma chamada de artigos aberta para um dossiê sobre o centenário. O site também anuncia a oferta de formação transversal relacionada à obra de Paulo Freire no segundo semestre letivo de 2021. A comissão pode ser contatada pelo e-mail paulofreirefaeufmg@gmail.com.
Prática pedagógica é política
“Círculos de cultura” e uma relação horizontalizada entre aluno e professor, em substituição às tradicionais salas de aula, onde impera a hierarquia; palavras “geradoras” do processo educacional escolhidas com base no universo cultural do educando, em vez das tradicionais cartilhas padronizadas; debate entre alunos, em vez de meras aulas expositivas; uso abundante de imagens. Todos esses recursos ajudam a entender o pioneirismo da experiência de Angicos e do método de Paulo Freire, mas ainda assim não dão a dimensão real da relevância da revolução iniciada – e logo interrompida – em Angicos.
“Para Paulo Freire, a educação é um ato político; portanto, um trabalho coletivo, que reeduca todos os sujeitos e autores envolvidos”, afirma o doutor em educação Moacir de Góes no Dicionário Paulo Freire (Autêntica, 2008). “Não são as teorias modernas ou os conceitos abstratos que educam. É a prática concreta que, sendo pensada à luz da teoria, transforma a realidade histórica de cada povo. Essa é, em suma, a pedagogia de Paulo Freire – uma práxis transformadora das estruturas e das pessoas.”
“Paulo Freire tinha o diálogo e a prática política como elementos fundamentais de construção de conhecimento”, acrescenta o professor, pesquisador e ativista social Sérgio Haddad, na palestra que abriu as comemorações do centenário, em março deste ano. A conferência está gravada no canal da FaE no YouTube.
Na ocasião, Haddad falou sobre seu livro O educador: um perfil de Paulo Freire (Todavia, 2019). Na obra, ele recupera a experiência de alfabetização em Angicos e a perseguição que o pensador sofreu dos militares, sua prisão, seu exílio, sua fama internacional e seu celebrado retorno ao Brasil após a anistia.
“Chamo [o método do Paulo Freire] de ‘prática política’ porque, para ele, a prática pedagógica nunca é neutra, ela é sempre uma prática intencionada; ela sempre tem por objetivo alguma coisa que está na mão do educador e que se ‘refaz’ por meio do diálogo com o educando. Para Freire, é a prática que dá o tom do pensamento crítico das pessoas, do seu conhecimento. Não que ele desprezasse a teoria, mas ele sempre foi muito crítico em relação à teoria que se reduz apenas a conceitos que os alunos decoram e vão tentar, depois, aplicar na realidade”, disse Haddad.