‘Cristo crucificado’ restaurado pelo Cecor é devolvido ao presidente Lula
É a segunda vez que a peça passa por reparação na UFMG; imagem está exposta no gabinete da Presidência, no Palácio do Planalto
Logo depois que os prédios do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Palácio do Planalto foram depredados nos ataques antidemocráticos de janeiro deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pediu que a imagem de Cristo crucificado, que o acompanhou em seus dois mandatos, de 2003 a 2010, fosse encontrada e retornasse ao gabinete presidencial. Talhado em madeira de tília, o Cristo Morto foi retirado do gabinete quando Dilma Rousseff assumiu a presidência, em 2011.
Presente de José Alberto de Camargo, diretor da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), que a comprou de Dom Mauro Morelli, bispo de Duque de Caxias, trata-se de uma peça de estilo espanhol do século XVI. Luiz Souza, vice-diretor do Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais (Cecor) da UFMG e professor da Escola de Belas Artes (EBA), participou do encontro que devolveu a peça restaurada ao presidente na tarde da última sexta-feira, 21. Ele conta que o envolvimento da Universidade com a imagem é antigo.
"Após as eleições de 2002, quando Lula foi eleito, fomos contatados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) a respeito da demanda da Presidência da República para a restauração dessa imagem do Cristo. Naquela época, realizamos o estudo de proveniência da peça e a sua restauração. “Foi um trabalho marcante, o primeiro projeto de restauração de patrimônio cultural cujas análises físico-químicas foram financiadas pelo Fundo de Direitos Difusos (FDD) do Ministério da Justiça", informa Souza..
O professor explica que o segundo trabalho do Cecor para restaurar a peça teve início em fevereiro deste ano e visou à reparação dos danos causados desde que a obra saiu do gabinete presidencial, em 2011, e passou para a guarda do Museu da República. "De 2011 para cá, a imagem teve sua coloração alterada devido a fenômenos físico-químicos ocasionados pelo ambiente onde ela esteve guardada. A imagem também apresenta problemas de desprendimento dos braços", detalha Souza.
Trabalho minucioso e complexo
A diretora do Cecor e professora da EBA, Alessandra Rosado, esteve envolvida nos dois trabalhos de restauração da imagem. Em 2003, ela era estudante de pós-graduação da Unidade e participou do trabalho como bolsista. Neste ano, já como diretora do Cecor, coordenou o trabalho de restauração, que foi executado pela especialista em conservação-restauração Moema Nascimento Queiroz, servidora técnica-administrativa da UFMG. "Esta segunda restauração foi bem diferente da primeira porque as ferramentas utilizadas naquele trabalho em 2003 eram outras. Hoje temos equipamentos mais modernos e conseguimos analisar até a composição dos pigmentos da peça sem precisar retirar amostras", explica.
Alessandra Rosado acrescenta que a datação da peça e as suas características estilísticas revelam um Cristo que exprime divindade e realeza, ao mesmo tempo que apresenta qualidades humanas, como pelos no corpo. A imagem também possui perizônio, tecido que envolve a região dos quadris, policromado com detalhes fitomorfos e douramentos que imitam tecido brocado, “representação não comum em peças produzidas no Brasil".
A degradação da peça no intervalo entre a restauração deste ano e a de 2003 se deve, segundo a diretora do Cecor, a processos físico-químicos que ocorrem com o passar do tempo. Além disso, o fato dela ter sido armazenada nos últimos anos em um ambiente escuro no Museu da República também pode ter favorecido o escurecimento da carnação, que é a óleo.
"A peça retornou ao Cecor com manchas, áreas oxidadas e escurecidas e com alguns de seus membros desprendidos. Nosso trabalho baseou-se em análises de fluorescência para avaliar a dimensão das deteriorações, com a higienização da peça e com o nivelamento e reintegração das lacunas que ela apresentava. Percebemos que a obra ficava com os pés encostados na parede, e isso poderia comprometê-la no futuro. Então, também desenvolvemos um novo sistema de fixação para mantê-la mais segura. O trabalho de reintegração da obra foi muito complexo e desafiador", avalia a diretora.
A recuperação do Cristo Crucificado seguiu uma linha de restauração que manteve as transformações sofridas pela obra ao longo do tempo. "Se você observar bem, percebe que está faltando um dente na imagem, falanges de dedos das mãos e alguns espinhos da coroa. Poderíamos ter complementado essas falhas, mas optamos por um trabalho de restauração com objetivo de manter sua antiguidade", justifica Alessandra Rosado.
Cecor é referência
O Cecor é referência na América Latina em restauração de bens culturais móveis. “Vinte anos separam os dois processos de restauração. Nesses dois momentos, o Cecor foi escolhido pela Presidência da República para executar esse trabalho tão complexo. Isso não ocorreu por acaso e se deve à competência científica de sua equipe, que, além de recuperar peças valiosas de vários acervos espalhados pelo país e pela América Latina, também é responsável por formar outros técnicos que se dedicam à mesma tarefa”, avalia a reitora Sandra Regina Goulart Almeida.
Fundado na década de 1980, o Cecor contava apenas com cursos de especialização até 2008, quando, graças ao Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), o curso de bacharelado em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis foi criado. Atualmente, existem cursos de restauração nas universidades federais de Pelotas (Ufpel), do Pará (UFPA) e do Rio de Janeiro (UFRJ).
Luiz Souza acredita que o Cecor está preparado para atender à crescente demanda de profissionais especialistas que atuam com restauração e com conservação de bens móveis. Segundo ele, é cada vez menor o intervalo entre as várias restaurações realizadas em bens móveis, e isso indica a necessidade de profissionais mais focados nos trabalhos de conservação do que na restauração propriamente dita. "Para proteger os bens móveis, os órgãos públicos devem realizar trabalhos de conservação preventiva e de gestão ambiental e de risco. A gestão preventiva diminui os ciclos de restauração de uma mesma obra e ajuda a preservar o nosso patrimônio", conclui Souza.