Editora UFMG é a casa do crítico literário Antoine Compagnon no Brasil
Autor, que completa 72 anos nesta quarta, tem sete livros traduzidos pela Editora; o oitavo, de crônicas, está a caminho do prelo
Em meados de 2013, o pesquisador Jean-Baptiste Amadieu, do Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS) da França, fez uma longa entrevista com o escritor e crítico literário belgo-francês Antoine Compagnon, de quem a Editora UFMG traduziu e publicou, nas últimas décadas, meia dúzia de livros. O conjunto das conversas – publicadas em livro ainda em 2013, sob o título Une question de discipline: entretiens avec Jean-Baptiste Amadieu – foi recentemente traduzido, tornando-se a sétima obra do autor, que completa 72 anos nesta quarta, dia 20, a ser traduzida para o público brasileiro pela Editora UFMG, casa responsável por todas as obras do autor publicadas no Brasil, à exceção de Uma temporada com Montaigne, publicada pela WMF Martins Fontes em 2015. E o oitavo livro do autor publicado pela Editora UFMG já está a caminho do prelo: Crônicas digitais reunirá os textos que Compagnon escreveu para a versão francesa do jornal Huffington Post sobre sua relação com o universo digital [leia mais sobre essa relação ao fim desta matéria].
Apesar de ter sido tirado do prelo em 2020, o volume Uma questão de disciplina: entrevistas com Jean-Baptiste Amadieu começa agora a circular mais fortemente entre os pesquisadores que trabalham com o autor graças à retomada gradual de aulas e congressos presenciais. O livro compila o resultado de algumas semanas de conversas entre entrevistador e entrevistado, conversas que atravessam da juventude do crítico literário aos anos mais maduros de sua carreira docente. Especialista na obra de Marcel Proust (1871-1922), Antoine Compagnon – que é professor emérito do Collège de France – foi eleito em fevereiro para uma cadeira da Academia Francesa, uma das mais antigas e prestigiadas instituições intelectuais do mundo.
Na introdução desse livro, Compagnon explica que a conveniência do nome dado à sua coleção de entrevistas se dá pela pluralidade de sentidos que estão associados ao termo “disciplina”, que pode significar tanto a matéria ensinada como a ação de ensinar — assim como a ideia de haver uma regra metódica de vida, no sentido de “ter disciplina”. Escreve Compagnon: “Disciplina, em latim, é a ação de ensinar, e um professor, o que eu sou há quase quarenta anos [atualmente, cinquenta], é alguém que fez da ação de ensinar – de ensinar aos outros, mas primeiro de ensinar a si mesmo – sua vocação, outro vocábulo um pouco obsoleto, mas não menos apto no caso. Em francês, a disciplina é a matéria que é objeto de um ensino, é um ramo do conhecimento; meu próprio aprendizado foi por muito tempo marcado por uma hesitação sobre a disciplina, por um vagar entre as disciplinas, antes de encontrar um ponto fixo, por assim dizer, ou, mais modestamente, uma base entre as disciplinas. Enfim, uma disciplina é uma regra de vida, de conduta, em particular uma regra monástica, e é verdade que um professor, um intelectual, um escritor é em certa medida um clérigo.”
Um panorama de toda a vida
No conjunto de argumentos compilados pelo livro, Compagnon conta das leituras de sua infância e de sua trajetória escolar nos Estados Unidos (internato, colégio militar, escola politécnica, formação em engenharia etc.), quando nada ainda parecia destiná-lo a uma carreira no âmbito da literatura. Fala, ainda, de sua experiência no serviço militar, de seu apreço pelas bibliotecas, da sua vivência com Maio de 1968, da descoberta de sua vocação para a docência e de seus primeiros anos de estudos linguísticos e filosóficos, época de encontros decisivos com pensadores como Roland Barthes, Michel Foucault e Claude Lévi-Strauss. Diz, por fim, da rotina intelectual dos seus anos mais maduros e da sua noção do que possa ser – e de como possa nos servir – um modelo literário: “A literatura não oferece regras a seguir, mas modelos de compreensão do que acontece”.
Na obra, o intelectual também faz uma revisão crítica das suas principais obras, como O trabalho da citação, O demônio da teoria e Os cinco paradoxos da modernidade (todos publicados no Brasil pela Editora UFMG), oferece uma análise das obras e trajetórias de Michel de Montaigne (1533-1592), Charles Baudelaire (1821-1867) e o já citado Proust, seus principais objetos de estudo, e estabelece uma reflexão sobre a paisagem literária contemporânea. Além disso, ele apresenta uma proposição do que possa ser, hoje, a teoria literária. Os excertos abaixo, que constam da última parte do livro – denominada As Letras hoje – dão uma ideia do tom das conversas que a obra reúne:
Jean-Baptiste Amadieu: Como os gêneros literários parecem ter evoluído?
Antoine Compagnon: A história moderna dos gêneros é a de sua simplificação, de sua redução progressiva. No século 19, só restavam o teatro, a poesia lírica e o romance, segundo essa ordem hierárquica e sem mais especificações em subgêneros. Todos os escritores, Baudelaire, Flaubert, Henry James, sonharam com o teatro porque ali adquiririam fortuna e influência. [...] Desde então, o lugar da poesia tem diminuído como a pele de onagro de Balzac e o teatro foi marginalizado. Só há lugar para o romance! É preciso confessar: o romance engoliu tudo e damos esse nome para qualquer coisa, de modo que a noção de gênero não tem mais grande pertinência. [...] Estou exagerando pois restam alguns dramaturgos de qualidade. [...] E a poesia continua viva, mesmo que ela pareça confidencial. Contudo, o romance hoje absorve o conjunto da literatura. E no romance como distinguir os subgêneros? É muito difícil, uma vez que podemos chamar tudo de romance, quer se trate de autobiografia, autoficção, lembranças, memórias, testemunhos ou pensamentos, nótulas, fragmentos. [...]
Jean-Baptiste Amadieu: A fragmentação do tempo ameaça a literatura a longo termo?
Antoine Compagnon: É primeiro uma ameaça para a leitura linear. Lê-se cada vez mais, mas em telas. A mutação se situa aí, e não numa renúncia à leitura mais geral. Os profetas de uma civilização da imagem se enganaram, portanto. O texto penetra cada vez mais em nossa relação com o mundo; só o suporte está mudando. A tela se substitui ao livro e ao papel. [...]
Jean-Baptiste Amadieu: Os novos meios de comunicação têm parte nessa mudança?
Antoine Compagnon: Claro, todos lemos, inclusive eu, cada vez mais em telas – nossos telefones, tablets, e-readers, computadores – e menos em livros. Lemos mais do que nunca, mas a leitura linear está se desvanecendo em proveito do modelo descontínuo, intermitente, despedaçado do “mosaico”, como se pode traduzir windows. Lemos textos pulando de uma rubrica, de uma cápsula para outra, e não mais nos deixando levar da primeira à última linha. [...] Tal mutação levanta todo tipo de questão. Como manter na escola o aprendizado da leitura linear, solitária, contínua, prolongada, atenta? Esse antigo modelo de leitura vai sobreviver por muito tempo? É uma pergunta séria, que concerne a nós todos. [...]
A propósito desse último trecho, a atual tradutora de Antoine Compagnon para a Editora UFMG, Laura Taddei Brandini, que é professora de literatura francesa na Universidade Estadual de Londrina (UEL), conta que o crítico literário é de fato um apaixonado por tecnologia. “Ele é muito ligado nisso tudo, todas as novidades tecnológicas ele quer, ele compra, ele tem. Ele compra assim que sai. Então, durante uns seis meses, mais ou menos, ele escreveu crônicas para a versão francesa do jornal Huffington Post sobre essa sua relação com essas coisas digitais – sobre a sua relação com esse universo digital, mas também uma reflexão sobre essas coisas. São esses textos que estão reunidos no Crônicas digitais, que sai em breve pela Editora UFMG”, diz.
Laura foi orientanda de Patrizia Lombardo, companheira de Compagnon, falecida em 2019. “Essa é mais uma das coincidências que me encaminharam para o autor. De fato, uma parte muito bonita dessas crônicas é o diálogo que, nelas, ele mantém com a Patrizia”, conta a tradutora, que começou a traduzir o autor depois de assistir in loco a conferência La Littérature, pour quoi faire?, ministrada por Compagnon no Collège de France em 2006, como aula inaugural. “Assim que eu assisti àquela conferência soube que ‘teria’ de traduzi-la para o Brasil. Aquilo foi um absurdo, uma revelação”, conta. A partir desse trabalho, Laura foi “herdando” Compagnon de Cleonice Paes Barreto Mourão, professora aposentada da Faculdade de Letras da UFMG que traduziu o primeiro livro do crítico que circulou no Brasil, O trabalho de citação, de 1996. A conferência de Compagnon – publicada em português sob o título Literatura para quê? – pode ser assistida no vídeo abaixo (em francês). E, na lista a seguir, é possível conhecer todas as obras do autor disponíveis para o público leitor do português brasileiro.
Obras de Compagnon publicadas no Brasil
Livro: O trabalho da citação (1996)
Autor: Antoine Compagnon
Tradução: Cleonice Paes Barreto Mourão
Editora UFMG
R$ 33 / 176 páginas
Livro: Os cinco paradoxos da modernidade (1996)
Autor: Antoine Compagnon
Tradução: Cleonice Paes Barreto Mourão, Consuelo Fortes Santiago e Eunice D. Galéry
Editora UFMG
R$ 43 / 139 páginas
Livro: Literatura para quê? (2009)
Autor: Antoine Compagnon
Tradução: Laura Taddei Brandini
Editora UFMG
R$ 15 / 73 páginas
Livro: O demônio da teoria: literatura e senso comum (2010)
Autor: Antoine Compagnon
Tradução: Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago
Editora UFMG
R$ 49 / 292 páginas
Livro: Os antimodernos: de Joseph de Maistre a Roland Barthes (2011)
Autor: Antoine Compagnon
Tradução: Laura Taddei Brandini
Editora UFMG
R$ 68 / 573 páginas
Livro: Uma temporada com Montaigne (2015)
Autor: Antoine Compagnon
Tradução: Rosemary Costhek Abílio
Editora WMF Martins Fontes
R$ 44,90 / 168 páginas
Livro: A era das cartas (2019)
Autor: Antoine Compagnon
Tradução: Laura Taddei Brandini
Editora UFMG
R$ 42 / 189 páginas
Livro: Uma questão de disciplina: entrevistas com Jean-Baptiste Amadieu (2020)
Autor: Antoine Compagnon
Tradução: Laura Taddei Brandini
Editora UFMG
R$ 53 / 245 páginas