Escola de Veterinária prepara agentes públicos para lidar com acumuladores de animais
Por meio de oficinas e cursos, grupo de pesquisadores compartilha com gestores e técnicos municipais metodologia que possibilita detectar e tratar os casos
Estudo feito em 2017 estimou que Belo Horizonte tinha aproximadamente 400 casos de acumulação de animais. O Transtorno de Acumulação de Animais, que já foi classificado como doença pela medicina, leva o indivíduo a reunir um número excessivo de animais em ambientes domésticos, falhando em proporcionar a eles padrões mínimos de nutrição, saneamento e cuidados veterinários. A acumulação se torna um problema de saúde pública quando os tutores, incapazes de prover bem-estar, vivem em ambientes insalubres que favorecem o aparecimento de zoonoses.
Para capacitar agentes do poder público para lidar com esse problema, as professoras Danielle Ferreira de Magalhães Soares e Camila Stefanie Fonseca de Oliveira, do Departamento de Medicina Veterinária Preventiva da Escola de Veterinária da UFMG, coordenam um projeto de extensão destinado à capacitação de agentes de saúde e de combate a endemias, veterinários e outros técnicos em saúde, além dos gestores municipais e secretários de saúde e do meio ambiente. Esses profissionais são preparados para detectar precocemente e tratar os casos de acumulação de animais em seus municípios.
“É um problema pouco discutido no país, mas que tem crescido de forma surpreendente por causa da superpopulação de cães e gatos e da ausência de políticas públicas de manejo ético populacional. Desde a adoção da legislação contra a eutanásia de animais pelos centros de zoonoses, que representou um avanço do ponto de vista de direito e respeito com os animais, vigente em Minas Gerais desde 2016, e em todo o país desde 2021, vários municípios têm dificuldade de lidar com o excesso de animais”, explica a professora. Segundo ela, os gestores não tinham um plano B para controlar o excedente de animais nas ruas. Muitos deles são resgatados ou mantidos por pessoas com comportamento de acumulação, e muitos protetores de animais estão adoecendo também por excesso de compaixão e falta de opção para cuidar de tantos animais em situação de abandono e maus-tratos.
Danielle Magalhães esclarece que o poder público tem a responsabilidade de cuidar dos animais dos acumuladores, devendo prover castração, vacinação e educação para quem recolhe e cuida de cães e gatos. E orientar a população para que esses casos sejam precocemente amparados pelo serviço integral de saúde especializado, com garantia de tratamento psicológico e psiquiátrico para quem vive em situação de acumulação. Por isso, a atuação das professoras se dá na relação com o poder público e o Ministério Público, e não diretamente com quem acumula os animais.
“Nossa capacitação com os agentes públicos envolve o ensino de uma metodologia de realização de recenseamento dos animais de seus municípios, que define critérios e classifica os tipos de acumuladores locais, e propõe estratégias para lidar com esse problema. Ministramos oficinas e cursos de capacitação para esses profissionais lidarem com o problema. Também realizamos trabalhos presencialmente com as equipes municipais.”
O programa de capacitação foi lançado em 2020. Até o momento, mais de 200 municípios já foram treinados pelo grupo da UFMG. Os treinamentos também estão sendo avaliados por pesquisa realizada pela doutoranda Luana Neves, orientada pela professora Camila Oliveira, que recolhe indicadores dos municípios que estão nas fases de implementação do aprendizado adquirido nos treinamentos.
Além do programa de capacitação, o grupo coordenado pela professora Danielle também publicou, em parceria com o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e com a Coordenadoria Estadual de Defesa da Fauna (Cedef), o Guia de atenção aos acumuladores de animais, leishmaniose visceral canina e esporotricose zoonótica. O informe técnico, disponível para consulta, contém propostas para melhorar a qualidade de vida dos acumuladores, dos animais e das comunidades afetadas e orienta os promotores de Justiça de Meio Ambiente sobre o controle da leishmaniose e da esporotricose zoonótica.
Até o final do ano, o grupo pretende lançar um novo guia sobre o tema, com capítulos escritos por diferentes profissionais que tratam do problema e outros destinados a protetores animais e juristas que atuam na área.
O treinamento
A equipe liderada pela professora Danielle Magalhães trabalha para que o poder público aprenda a lidar com os acumuladores de animais, mostrando o caminho que os agentes devem percorrer. A primeira etapa do treinamento é voltada para o mapeamento dos casos existentes. Em outro momento, a equipe age em duas frentes, para minimizar os impactos dos casos existentes e elaborar estratégias para a prevenção de novos casos. Danielle conta que a prevenção é importante porque a literatura da área mostra que existem gatilhos emocionais que podem levar as pessoas a acumular animais.
Danielle exemplifica que mulheres que já passaram por algum trauma de perda familiar, doença grave ou violência tendem mais a acumular animais porque depositam neles sentimentos que deixaram de nutrir por seres humanos.
“Suponhamos que um profissional da Estratégia de Saúde da Família, em um centro de saúde, atenda uma pessoa que perdeu um filho, por exemplo, e demonstra muita empatia pelos animais. Se essa pessoa for considerada uma acumuladora em potencial, o agente precisa estar preparado para lidar com ela a fim de evitar que esse fenômeno se concretize, com atendimento psicológico ou psiquiátrico. Por isso, uma frente importante do projeto visa ensinar às equipes de saúde da família a identificar esses gatilhos.”
Manejo dos animais é desafio
Danielle afirma que o manejo ético populacional dos animais é essencial. Ela explica que, na maioria dos municípios, o manejo é feito com a retirada dos animais das casas dos acumuladores e a sua transferência para os canis públicos ou centros de controle de zoonoses. Tais centros, segundo a professora, não têm capacidade de abrigar todos os animais recolhidos e, por isso, deveriam ser destinados apenas àqueles com suspeitas de doenças ou que aguardam cirurgias de castração.
“Os centros não têm capacidade para abrigar todos os animais que vivem no lar de um acumulador. Por isso, nosso programa inclui um trabalho em parceria com o Ministério Público para que não se exija o recolhimento obrigatório desses animais das casas dos acumuladores, pois o ideal é que o manejo ocorra no local onde eles já estão. Dos pontos de vista sanitário e comportamental, é mais benéfico para os animais o manejo na própria casa. A Prefeitura precisa prover infraestrutura física, comida, vacinas e castração", reitera a professora.
Danielle Magalhães avalia que o manejo deve ser feito na casa do acumulador, que, com suporte do poder público, ganhará condições de oferecer os cuidados necessários para que os animais vivam com qualidade. “Assim, chega-se à guarda responsável, estágio em que o tutor consegue prover as cinco necessidades básicas para o bem-estar animal: estado livre de fome e sede (liberdade nutricional), de intempéries (frio, chuva e sol), de medo, de injúrias físicas e desenvolvimento do comportamento natural (correr, cavar etc.)”, ela explica.
Perfis
A professora Danielle Magalhães comenta que o problema da acumulação de animais é grave no Brasil porque o país tem uma cultura em que as pessoas descartam animais idosos ou que apresentam comportamentos indesejáveis. Esses bichos são abandonados na rua e podem acabar adotados por pessoas que, apesar de terem mais compaixão, não reúnem as condições necessárias para cuidar deles.
Ela acrescenta que os acumuladores de animais podem ser divididos em três grupos. O primeiro é formado pelas pessoas que têm compaixão pelos animais e atuam como “protetores”, mas, por motivo financeiro ou de saúde, perdem as condições de prover as cinco necessidades básicas dos animais. “Esse grupo e o de pessoas bem intencionadas, mas que deixam de ser protetoras e se tornam acumuladoras. Elas recolhem todos os animais que encontram em situação de abandono, mesmo quando não conseguem cuidar deles.”
O segundo grupo é formado por pessoas que acreditam que têm uma missão, ou seja, recolhem os animais abandonados porque se veem na obrigação de cuidar deles. São os “resgatadores” que costumam ter dificuldade de aceitar ajuda para o manejo dos animais.
Por fim, o terceiro grupo, segundo Danielle, é formado pelos “exploradores”. Eles são a minoria e exploram o animal em benefício próprio. “Nesse grupo, os maus-tratos são intencionais. Trata-se de pessoas que têm animais para controle de roedores, para cuidar da casa, entre outras funções. Nesses casos, além da presença dos agentes da prefeitura, há necessidade de intervenção policial ou judicial”, conclui a professora.