[Opinião] Ninguém precisa saber
Adlane Vilas-Boas, do ICB, analisa resultados de estudo que tenta explicar por que pesquisadores e professores universitários evitam se identificar como cientistas
Ainda não sei o que pensou a agente de imigração no aeroporto de Bogotá quando respondi que era cientista ao ser perguntada sobre minha profissão. Estava a caminho de um congresso em Medellín, onde apresentaria os dados iniciais da pesquisa que culminou com recente publicação nos Anais da Academia Brasileira de Ciências.
A pesquisa já indicava que a nossa hipótese de que professores universitários não se apresentam como cientistas ao serem indagados sobre a sua atuação profissional podia estar correta. Honestamente, eu mesma tinha meus recatos ao fazê-lo, mas a situação me deu coragem para testar. Testar minha reação e a reação das pessoas. A minha foi um certo rir por dentro, um misto de êxito, vergonha e satisfação. A agente me deixou entrar no país, e eu nunca saberei se ela achou que eu não entendia bem o espanhol ou era alguém muito estranha. Já havia visto uma cientista antes? Seria isso limitado àquela senhora? Ou mundo afora as pessoas não conhecem cientistas?
Por meio de enquetes nacionais sabemos, por exemplo, que no Brasil cerca de 90% da população não sabe indicar o nome de um ou uma cientista. Nos Estados Unidos, os números não são muito melhores que aqui – 19% dizem conhecer um nome de cientista. Então, onde estão esses cientistas que não são famosos o suficiente para serem lembrados? Dentro das universidades! Às vezes chamados como autoridades nas mídias, eles têm ao lado dos seus nomes a designação cientista? Não. São identificados como médicos, microbiologistas, ecólogos, geólogos, professores etc.
Os resultados que apresentamos na Colômbia são provenientes de pesquisa (*) que contou com grupo de 20 docentes do Instituto de Ciências Biológicas, todos biólogos, que responderam a questões sobre se apresentar com o nome cientista em diferentes situações, formais e informais, como preencher uma ficha no banco ou apresentações entre amigos ou em família. Uma minoria absoluta acusou usar o nome cientista para se autodenominar, e muitos apontaram que o uso da palavra professor era o seu preferido, variando frente às situações diversas. Entender o porquê dessas escolhas nos interessava muito e, por isso, partimos para o segundo momento da pesquisa, em que pudemos ouvir o que pensavam outros biólogos sobre esses achados com a metodologia do grupo focal.
O estudo qualitativo mostrou que a principal ideia desses docentes era que o cargo que eles exercem é de professor, afinal foi para isso que fizeram concurso público, mesmo que a função de pesquisa esteja explícita nas atribuições do cargo. Assim, naturalmente é essa sua profissão, independentemente se é um biólogo que se dedica à bioquímica ou à zoologia em suas pesquisas. Cientista, na verdade, não é uma profissão regulamentada (por maior que tenha sido o lobby da nossa autoexilada Suzana Herculano-Houzel no Congresso Nacional). Alguns concordam que dizer “sou cientista” pode soar pedante ou pouco modesto, e isso pode estar associado à opinião de que um cientista é uma pessoa muito especial, que conseguiu êxitos muito elevados, que merece respeito por descobertas muito importantes para a humanidade. Ao mesmo tempo, a profissão professor universitário foi apontada como sendo de destaque na sociedade.
“Cientistas” como coletivo refere-se a um grupo de pessoas que fazem a ciência acontecer, mas trata-se também de uma entidade abstrata que ganha personificação em manchetes como Cientistas descobrem um medicamento contra a covid. O termo cientista acaba tendo uso restrito, inclusive dentro da própria comunidade científica – um dos entrevistados sugere ser uma atribuição usada pela mídia. O próprio CNPq, maior financiador das pesquisas no Brasil, usa o termo pesquisador em vez de cientista nos seus documentos.
A criação do termo cientista, em 1833, é atribuída a William Whewell e resultou da necessidade de se estabelecer um nome para os chamados “homens da ciência”. A evolução da ciência como disciplina contribuiu para a formulação de um novo nome para essa atividade, mas o próprio criador reconhece que um cientista poderia ser um matemático, um físico, um naturalista. A diversidade de ocupações em diferentes áreas impede que o cientista tenha uma identidade própria, nem na origem do termo. No Brasil, o nome cientista incluía diversos tipos de pessoas como intelectuais e pessoas cultas com predisposição a habilidades retóricas, literatura e filosofia. É curioso verificar o nome scientista em edições antigas de jornais brasileiros que não corresponde à ocupação hoje associada a experimentações e análises. Dados históricos mostram também que o surgimento do cientista como categoria profissional viria muito posteriormente, coincidindo com a criação das universidades no país.
A pandemia talvez tenha ensinado de forma dura quem são os cientistas e como é feita a ciência no Brasil.
Se a função do cientista está intimamente ligada à criação das universidades e ao seu atual funcionamento, haveria alguma consequência em omitir o termo das ações do dia a dia? O grupo de docentes estudado não apontou ver qualquer consequência do não uso do nome cientista para se autodesignar. Isso não quer dizer que não se veem como cientistas. Quando apresentados ao fato de que a maioria dos brasileiros não sabe indicar um nome de um cientista contemporâneo, – e de que isso pode ter implicações para a falta de percepção sobre a importância de se ter investimentos assegurados para a ciência e tecnologia –, o grupo entendeu que talvez fosse importante se apresentar de forma diferente ao público em geral como forma de mostrar quem são os cientistas do Brasil. Expor-se na mídia pode ter essa função, mas não poderia ser um caminho para todos.
A pandemia de covid-19 apresentou um lado positivo para a exposição de cientistas no Brasil e no mundo, uma cobertura da mídia talvez nunca vista antes, com tantos cientistas de diversas áreas sendo entrevistados ou fazendo seus próprios relatos nas mídias sociais. Talvez esse cenário contribua para modificar a visão de brasileiros sobre os cientistas. Será interessante saber se, em uma próxima pesquisa sobre percepção pública da ciência, nomes de cientistas contemporâneos aparecerão junto com os comumente citados Oswaldo Cruz e Carlos Chagas. A pandemia talvez tenha ensinado de forma dura quem são os cientistas e como é feita a ciência no Brasil. No entanto, ainda é muito cedo para saber se isso será suficiente para garantir mais investimentos em ciência e tecnologia.
(*) A então estudante Tayline Oliveira coletou e analisou esses dados e os apresentou em seu trabalho de conclusão do curso de Ciências Biológicas, sob minha orientação e da pesquisadora Juliana Botelho, colaboradora que à época trabalhava no Cedecom UFMG.