Programa arqueológico brasileiro no Egito une os faraós à modernidade
Estudo coordenado pela UFMG investiga as ocupações contemporâneas das tumbas em uma perspectiva que transcende a linha tradicional, focada apenas no período faraônico
O Programa Brasileiro Arqueológico no Egito (Bape, de Brazilian Archaeological Program in Egypt) apresentou nesta quarta-feira, dia 3, os resultados dos trabalhos que vêm sendo realizados na Necrópole Tebana, em Luxor, no Egito. O projeto, que é coordenado pelo professor José Roberto Pellini, do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Fafich, é desenvolvido em parceria com o Centro de Documentação Egípcio, órgão do governo do país africano.
Na conferência Materialidades transitórias: a experiência do trabalho arqueológico brasileiro no Egito, o professor Pellini afirmou que os trabalhos de escavação, restauração e conservação da tumba tebana T123, localizada na margem oeste do rio Nilo, confirmam o novo entendimento de que o reconhecimento do passado e do patrimônio presentes na tumba, que remetem ao período faraônico, não representam uma realidade fixa e universal.
Pellini explicou que, ao chegar em Luxor em 2007, deparou com uma paisagem muito diferente daquela que imaginava: as tumbas e estátuas estavam ali, mas entremeadas por casas onde residiam cerca de 3,2 mil famílias qurnawis. “A região das tumbas era viva, havia uma vila pulsante naquele local”, contou.
Quando retornou ao local tempos depois, Pellini percebeu que as casas haviam sido retiradas pelo governo egípcio, e a Vila de Qurna, extinta. A paisagem havia se transformado, restando apenas as tumbas. Ao iniciar os trabalhos de escavação na T123, escolhida por apresentar alto potencial arqueológico, os pesquisadores encontraram vestígios de esterco nas paredes da tumba. O achado intrigou o grupo, pois o esterco não datava do período faraônico.
Tumba como casa
Para compreender o fenômeno, o grupo recorreu a um antigo morador da região, que habitava o local antes de o governo egípcio demolir as casas que existiam junto às tumbas. Esse morador contou que, durante o rigoroso inverno do deserto, os antigos habitantes da então chamada Vila de Qurna punham uma mistura de esterco e palha para secar nas paredes das tumbas. Posteriormente, essa mistura era usada para fazer fogo e, assim, aquecer o interior das tumbas, que serviam de celeiros para os animais.
“Enquanto nós associávamos o que era visto no interior da tumba ao Egito Antigo, esse antigo morador relacionava tudo a uma casa mais moderna. Para ele, aquela não era a tumba de Amenenhet que posteriormente se transformou em uma casa, mas uma casa que os arqueólogos insistiam em transformar em tumba. Percebemos que nossa visão normativa dificultava um olhar alternativo na prática arqueológica. Por isso, decidimos começar o projeto Casas, tumbas ou sítios arqueológicos, que discute a ocupação moderna na região que estávamos explorando”, diz Pellini.
Enquanto a maioria dos projetos arqueológicos realizados no Egito partem da ideia de que as tumbas são elementos fixos nos sistemas tradicionais de interpretação arqueológica, o Bape sugere, segundo o professor Pellini, que “sujeito e objeto ocorrem apenas dentro de uma relação, e a tumba, dependendo da relação em que está inserida, pode ser uma tumba faraônica, um estábulo ou um sítio arqueológico. O que determina o espaço são as relações vivenciadas naquele local. A tumba T123 foi construída há três mil anos como lugar de enterro de um nobre, mas, ao longo do tempo, foi reutilizada por uma série de comunidades que vieram depois”.
Essa junção de várias histórias que coabitam a tumba mostra a importância da conciliação entre o antigo e o moderno, na avaliação do professor. “O trabalho que estamos desenvolvendo desde 2015 leva à discussão do que é dano, patrimônio, herança, informação, arqueologia e cultura material. Quem poderia imaginar que uma tumba egípcia que atrai milhões de turistas de todo o mundo poderia ser usada para secar esterco ou criar galinhas? Essa não é a imagem que temos de uma tumba do período faraônico, nem a imagem que circula nos documentários. Mais do que oferecer esse novo ponto de vista, queremos invocar outras possíveis realidades. É uma tumba, mas também já foi uma casa”, diz.
Histórias silenciadas
Segundo Pellini, as tumbas exploradas pelo grupo de pesquisadores em Luxor reúnem histórias que costumam ser silenciadas, uma vez que a arqueologia egípcia está centrada apenas no Egito Antigo. “O turismo no país é dedicado a esse período, então é como se os outros dois mil anos da história egípcia não existissem. Já sabemos que uma família morou na tumba de Amenenhet no fim do século 19. Outra família habitou o local entre 1930 e 1970. Muitas equipes de arqueólogos escavam as tumbas e descartam o material posterior ao século 18. Queremos resgatar essa história e contá-la junto com a história faraônica."
Entre as descobertas do uso mais recente das tumbas, os pesquisadores destacam que, por serem térmicas (frescas no verão e quentes no inverno desértico), elas foram muito utilizadas como estábulo para animais ou como anexo das moradias construídas ao redor. O grupo descobriu que cerca de um terço das quase 1 mil tumbas da região serviu como habitação depois do período faraônico.
“Os qurnawis foram expulsos do local em 2006, mas, na década de 1980, um relatório do Banco Mundial já apontava que a retirada das populações modernas desses locais e a criação de museus a céu aberto eram um meio de melhorar o turismo no Egito. Essa estratégia privilegia o passado faraônico, ignorando as casas históricas que, apesar de datarem de 200 anos, também são importantes e aglutinam saberes e práticas locais que precisam ser conservados. Os qurnawis que foram expulsos dali tiveram sua história destruída e silenciada”, diz Pellini.
O professor acrescenta que essa comunidade, que antes trabalhava com arqueologia e turismo na região, foi enviada para um novo local longe das tumbas e, consequentemente, afastada das atividades econômicas que a sustentavam. “As pessoas foram enviadas para casas menores, sem espaço para tratar os animais. Além disso, por estarem longe das áreas de escavação, os qurnawis expulsos da sua antiga vila agora não conseguem trabalhar com escavação nem com turismo, pois estão em um local que não desperta o interesse dos visitantes", relatou Pellini.
Parceria que gera conhecimento
Durante a live de apresentação dos resultados do projeto, a reitora Sandra Regina Goulart Almeida afirmou ser uma grande entusiasta da iniciativa e da parceria entre a Universidade e o governo do Egito, visto que ambos valorizam o conhecimento científico, as universidades públicas e o financiamento da educação, da ciência e da tecnologia. “O Bape é o esforço da ciência que desvenda o mistério do passado e, assim, nos ajuda a encontrar soluções para o futuro. No momento em que vemos o negacionismo da ciência, precisamos valorizar as nossas instituições e os esforços contemporâneos de cooperação internacional. A produção de conhecimento de ponta deve ocorrer de forma integrada, interdisciplinar e colaborativa”, disse.
O embaixador do Brasil no Egito, Antônio de Aguiar Patriota, afirmou que acompanha os trabalhos que inseriram a UFMG no mundo da arqueologia egípcia e que o fascínio dos brasileiros por essa civilização antiga vem de longa data. “Dom Pedro II fez algumas viagens ao Egito e, já naquela época, estabeleceu laços com o país. Precisamos fortalecer essas parcerias porque a arqueologia egípcia não é só uma investigação do passado no território africano, mas, também, uma aventura que ilumina nossa trajetória civilizatória como humanidade”, destacou.
O Bape
O Programa Brasileiro Arqueológico no Egito (Bape) foi criado em 2015, na Universidade Federal de Sergipe, com o objetivo de desenvolver um ambiente para que pesquisadores brasileiros criassem projetos de caráter multidisciplinar e transversal no Egito. O grupo atua em cinco vertentes: arqueologia (que inclui a escavação e análise dos materiais encontrados nas tumbas), antropologia (que trata do contato com as comunidades locais), narrativas alternativas (que visam à construção de conhecimento de forma alternativa), restauração (que trabalha com a conservação e restauração dos materiais) e egiptologia (que faz a análise dos cenários das tumbas).
A primeira investida do Bape ocorreu em 2016, com a apresentação ao Comitê Permanente de Serviço de Antiguidades do Governo Egípcio do projeto de escavação, restauração e conservação das tumbas tebanas T123 e T368. O projeto foi proposto na forma de iniciativa conjunta com o Centro de Documentação Sobre o Egito Antigo, órgão do Ministério do Turismo e Antiguidades do país, e teve sua primeira atividade de campo em março de 2017, mesmo ano em que o projeto foi trazido para a UFMG pelo professor José Roberto Pellini, transferido para o Departamento de Antropologia e Arqueologia da Fafich.
Em 2018, o Bape iniciou os projetos Casas, tumbas ou sítios arqueológicos e Olhares. O primeiro tem apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e visa discutir as ocupações modernas em Luxor. Já o segundo visa criar narrativas alternativas sobre os sítios arqueológicos, sobretudo a respeito da tumba T123.
O Bape completou cinco anos de escavações em Luxor. Trata-se da primeira missão arqueológica egípcia chefiada por um brasileiro e por uma universidade do Brasil. A iniciativa também reúne pesquisadores da Universidade Nacional de Córdoba (UNC), da Argentina, e do Centro de Documentação do Ministério de Antiguidades do Egito.
O Bape deve voltar a Luxor para dar seguimento aos trabalhos em 2022, com o objetivo de explorar o artefato que acreditam ser uma câmara funerária descoberta na tumba T123 e para retomar o contato com um antigo morador qurnawi da tumba. O grupo acredita que os trabalhos de escavação devem durar mais cinco anos, quando a tumba poderá, então, ser aberta ao turismo.