Projeto da UFMG leva internet a aldeias Maxakalis do Vale do Mucuri
Iniciativa nasceu de demanda surgida no início da pandemia de covid-19; conexão é feita por satélite
Durante a pandemia de covid-19, a UFMG precisou se reestruturar para que as aulas da graduação e da pós-graduação fossem ofertadas remotamente. O maior desafio educacional relacionado ao distanciamento foi o acesso dos estudantes à internet, visto que muitos deles viviam em comunidades onde esse acesso era precário ou inexistente.
Lúcio Flávio Coelho Maxakali é um desses estudantes. Morador da aldeia Água Boa, localizada no município de Santa Helena de Minas, no Vale do Mucuri, em Minas Gerais, ele cursou a Licenciatura em Formação Intercultural para Educadores Indígenas (Fiei), da UFMG. Hoje estudante de mestrado, também na Faculdade de Educação (FaE) da UFMG, ele relata que sua aldeia não contava com acesso à internet.
“Moro em uma aldeia com cerca de 40 pessoas. Somos muito unidos, lá existem as nossas casas, o espaço para rituais e os espaços de socialização. Eu estudava na UFMG para tentar ajudar o meu povo, aprendendo coisas que seriam úteis para a minha comunidade, porém a falta de conexão à internet sempre foi um obstáculo”, desabafa.
O projeto de extensão Conectividade para indígenas e quilombolas surgiu como resposta à demanda dos Maxakalis e de outros povos indígenas e quilombolas. Na pandemia, a comunidade indígena de Água Boa pediu ajuda à UFMG para se conectar à internet. A FaE se juntou ao Departamento de Ciência da Computação (DCC) do Instituto de Ciências Exatas (ICEx) na busca por uma solução.
Internet via satélite
A longa distância entre a aldeia Água Boa e a antena da operadora de telefonia e internet mais próxima e o alto custo da conexão eram os principais obstáculos para que indígenas e quilombolas tivessem acesso à internet. A estudante de mestrado do DCC Júnia Maísa Oliveira explica por que isso ocorre: “Além da falta de infraestrutura física, há a dificuldade de passar cabos e equipamentos dentro das matas e em regiões ainda não exploradas. Geralmente, as aldeias são áreas preservadas ambientalmente, o que também restringe a instalação de equipamentos que possam levar a internet a essas pessoas. No caso da telefonia celular, as empresas costumam levar as torres para grandes centros, onde elas têm mais clientes. Por isso, esses locais também não costumam ter sinal de telefonia”, conta.
Júnia Oliveira acrescenta que as comunidades indígenas e quilombolas costumam estar situadas a mais de 10 quilômetros de distância dos centros urbanos, o que também dificulta a instalação de estruturas de fibra óptica ou cabos de cobre para levar a rede a esses locais. Para vencer esses obstáculos, a solução para conectar os Maxakali de Água Boa foi a internet via satélite.
“Realizamos dois testes preliminares. O primeiro foi em 2020, quando instalamos, na aldeia Jaqueira, um modem que amplifica o sinal para telefone celular. A ideia era amplificar o sinal de uma torre da Vivo instalada em um município que fica a 8 quilômetros da aldeia. A internet oscilou bastante, ou seja, a conexão não tinha a qualidade desejada”, explica.
Em um segundo momento, o grupo do DCC, sob a coordenação do professor José Marcos Silva Nogueira, adquiriu um equipamento chamado Starlink, que possibilita a conexão de internet via satélite por meio de uma antena receptora e um roteador. O equipamento foi instalado em Água Boa e em Pradinho, outra aldeia Maxakali, essa localizada no município de Bertópolis, também no Vale do Mucuri. Os testes foram iniciados em maio deste ano durante as oficinas de etnomapeamento do projeto Hãmhi|Terra Viva: Mães e pais da floresta, que prevê a formação de agentes agroflorestais Tikmu’un.
“O Starlink já foi instalado, e agora os indígenas estão testando o equipamento. Caso ele funcione bem, e os Maxakali se adaptem ao seu uso, nossa intenção é estender o projeto para outras comunidades. O projeto Conectividade para indígenas e quilombolas surgiu para atender os alunos indígenas e quilombolas da UFMG durante a pandemia, mas tem potencial para impactar positivamente muito mais pessoas e por muito mais tempo”, afirma Júnia.
Internet como extensão da esfera pública
A professora Vanessa Sena Tomaz, do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino da FaE, conta que, durante a pandemia, a equipe da Faculdade realizou levantamento das condições de conectividade dos estudantes. Com base nesse diagnóstico, a Pró-reitoria de Assuntos Estudantis (Prae) da UFMG lançou editais para facilitar o acesso de estudantes indígenas à internet. Esses editais fazem parte dos esforços da Universidade em busca da inclusão dos estudantes.
“Avisamos à Reitoria da dificuldade que esses estudantes estavam enfrentando para assistir às aulas. Então nos juntamos à equipe do DCC para elaborar estratégias que viabilizassem a conexão, particularmente dos Maxakali, em uma espécie de projeto-piloto”, diz.
Vanessa acrescenta que a instalação do Starlink, além de permitir aos indígenas assistir às aulas remotas, possibilita que façam chamadas de voz, usem aplicativos como o Whatsapp, estudem, produzam mapas e traduzam o idioma deles para o português. Estar na internet, segundo a professora, propicia aos povos o exercício do direito de ser parte da sociedade.
“Conectados, eles podem fazer parte do mundo que os rodeia, ao mesmo tempo em que divulgam suas culturas e participam de processos decisórios, reivindicando o direito de serem cidadãos. Por meio da internet, eles podem, inclusive, acessar o Ministério Público a distância. Assim eles passam a integrar a esfera pública, uma vez que a internet é um espaço de luta para o usufruto dos direitos de seus povos", complementa a professora Vanessa.
Vanessa Tomaz afirma que o fato de a internet disponibilizar conteúdos não apenas educacionais, mas também de entretenimento, precisa ser levado em conta. "A tecnologia facilita a vida das pessoas. No caso das aldeias e quilombos, levar internet a eles é extremamente necessário porque esses povos, muitas vezes, não têm acesso ao básico. Eles querem se conectar ao mundo, ao mesmo tempo em que mantêm e fortalecem suas culturas.”
Lúcio Maxakali comemora a instalação do Starlink na sua aldeia, em Água Boa. “Além de assistir às aulas remotas, o equipamento abre novas possibilidades. Podemos fazer pesquisas, consultar médicos, assistir a filmes e conversar com as pessoas que estão nas cidades", exemplifica.
Capacitação
Para acessar a internet com a conexão via Starlink, indígenas e quilombolas necessitam de capacitação, que deve ser realizada por equipe de educadores, antropólogos e técnicos de informática. Para isso, a equipe de professores idealizadores do projeto agora está em busca de recursos para viabilizar uma espécie de formação para os moradores das aldeias e quilombos onde a tecnologia será instalada.
“Observamos que uma formação para o acesso a essa internet é essencial para o combate à desinformação. Instalaremos os notebooks, a antena e demais equipamentos que possibilitam a navegação na internet em pontos de uso coletivo das aldeias. Nossa intenção é criar uma formação de articuladores de culturas digitais indígenas e quilombolas que dure um ano. Vamos começar formando 30 pessoas, e elas serão responsáveis por cuidar dos equipamentos, aprender a fazer a manutenção deles e a fazer a articulação dos seus usos pelos membros da aldeia”, conclui Vanessa Tomaz.