Tese da psicologia revela como docentes valorizam em suas práticas a função pública da ciência
Participaram da pesquisa dez professores de trajetórias distintas que têm em comum atividade extensionista intensa e “pedagogia que intervém no mundo”
A universidade pública no Brasil se encaixa muito bem na definição de “lócus fraturado”, conceito criado pela filósofa argentina María Lugones (1944-2020). Como defende o psicólogo social Ricardo Dias de Castro, que concluiu o doutorado na UFMG no último mês de janeiro, trata-se de um “lugar de existência contraditória, em que convivem a lógica colonial e o desejo de resistência”. Interessado no que professores da UFMG pensam e como eles agem em relação a isso, Ricardo entrevistou dez deles, de diferentes áreas, para subsidiar a tese Saberes e práticas que decolonizam a ciência e o conhecimento: construções narrativas (auto)biográficas de docentes da UFMG.
“Os docentes entendem que ocupam um lugar de poder destinado, historicamente, a atender às demandas das elites do Brasil, mas apostam no potencial público da universidade, em sua capacidade de se abrir, cada vez mais, aos interesses de todos, no sentido da garantia de direitos e da produção cidadã”, afirma Ricardo Castro. Ele acrescenta que seus entrevistados criticam constantemente suas próprias posições na universidade pública, convocando pessoas e grupos que não frequentavam a universidade “para que sejam também protagonistas de saberes e fazeres importantes para a sociedade”.
Os professores participantes da pesquisa, segundo Ricardo, compartilham um projeto ético-político marcado pela preocupação com a função política da ciência, construída de acordo com as demandas sociais. Um dos critérios para a escolha dos nomes foi a participação intensa em ações de extensão. “A extensão é, historicamente, o lugar de maior diálogo com a sociedade quando pensamos no tripé ensino-pesquisa-extensão da universidade brasileira. É um dispositivo que desorganiza a lógica colonial ao se apoiar na realidade material, histórica e social. No Brasil e na América Latina, a atividade extensionista nasceu com caráter popular, de intervenção efetiva na realidade das pessoas. Representa a resistência contra a desigualdade e o autoritarismo”, diz o pesquisador, que foi orientado pela professora Claudia Mayorga, pró-reitora de Extensão da UFMG.
Ricardo Castro entrevistou Alexandre Marcussi (História), Luciana Oliveira (Comunicação), Marcia Martins (Agronomia), Marcos Hill (Belas Artes), Marcos Vinicius Bortolus (Engenharia), Maria Aparecida Moura (Ciência da Informação), Marlise Matos (Ciência Política), Mateus Ramírez (Veterinária), Roberto Monte-Mór (Economia) e Shirley Miranda (Educação).
Encontro, respeito e cuidado
O pesquisador atua no campo de estudos feministas, no qual se situa a metodologia escolhida para sua tese. Segundo ele, os estudos feministas preconizam processos de pesquisa que recusam o domínio de princípios “como os da neutralidade e da razão ‘descorporificada’ que se tornou modelo único de uma ciência mais tradicional”.
“Diferentemente dos métodos que priorizam a descrição de realidades supostamente naturais, as pedagogias decoloniais que regem o trabalho dos docentes entrevistados para a tese estão interessadas em intervir no mundo. Isso é feito por meio de metodologias e tecnologias de militância construídas com encontros, respeito, autocuidado e cuidados recíprocos. O horizonte dessa produção acadêmica é a construção de uma sociedade em que diferenças não precisam ser gatilhos para a reprodução de violências e desigualdades”, afirma Ricardo Castro.
O pesquisador conta que, embora nenhum dos entrevistados tenha origem abastada, há distância grande entre as trajetórias de vida, marcada sobretudo por uma hierarquia racial. Professores homens e mulheres, brancos e de classe média, com familiares acadêmicos, têm histórias bem diferentes das que relatam os docentes negros de origem pobre e rural. “Os desafios para esses últimos foram postos com violência, constrangimentos, impedimentos”, diz Ricardo. “Nos depoimentos dos professores negros, homens e mulheres, aparecem experiências de estranhamento na chegada à universidade para os cursos de graduação. Os códigos acadêmicos não eram óbvios para essas pessoas, cujas famílias foram excluídas dos sistemas educacionais formais. E a universidade só foi possível para elas em razão das redes de solidariedade, suporte e cuidado que tornaram o espaço menos excludente e mais acolhedor”, ele prossegue, lembrando que os professores ingressaram na universidade muito antes das políticas de ações afirmativas.
Pedagogias para transformação
As entrevistas, de acordo com Ricardo Castro, revelam docentes convictos de que é necessário, mais que o diálogo, criar condições concretas para que se realizem as trocas, para que se garanta a “socialização de saberes acadêmicos, populares, progressistas e transgressores”, advindos também da experiência e da vida cotidiana dos diferentes povos. “O conhecimento não é tomado como uma teoria que se aplica a uma verdade do mundo. As teorias são utilizadas por esses docentes como dispositivos que colaboram para a compreensão de realidades que eles desejam transformar. Várias teorias sociais emancipatórias têm inspirado pedagogias políticas de transformação”, explica o pesquisador, citando, como referências, intelectuais como Lélia Gonzalez, bell hooks, Herbert Marcuse, Paulo Freire, Judith Butler e Gloria Anzaldua. “Bem mais que transmissores de um saber exato, os professores se entendem como formadores de sujeitos e cidadãos e como sujeitos capazes de aprender com o saber dos outros”, completa.
Ricardo salienta que empreender um projeto de mudança epistemológica e política não é tarefa fácil. As narrativas autobiográficas que subsidiaram a tese evidenciam, segundo ele, que “o compromisso por um mundo mais justo e diverso exige estratégias de enfrentamento que não podem ser prescritivas. E existem muitas maneiras de lidar com conflitos ideológicos, políticos, estéticos e cosmológicos no ambiente universitário”.
Para Ricardo Castro, a prática docente decolonial reconhece que há sempre “um algo a mais” a ser investigado na relação com o mundo. “Essa disposição para a experiência e o saber do outro interfere decisivamente nas formas que professores e professoras encontram para solidificação de um campo de ensino, pesquisa e extensão. É interessante notar que, onde há tentativas de silenciamento de grupos diversos e de obstrução da justiça social, haverá sempre docentes empenhados em garantir cidadania e justiça epistêmica e cognitiva.”
Tese: Saberes e práticas que decolonizam a ciência e o conhecimento: construções narrativas (auto)biográficas de docentes da UFMG
Autor: Ricardo Dias de Castro
Orientadora: Claudia Mayorga
Defesa: 20 de janeiro de 2022, no Programa de Pós-graduação em Psicologia