Pesquisa da Letras tem parceria com Angola e foco na experiência pessoal da autora
Em sua dissertação de mestrado, Carolina Archer reflete sobre línguas maternas, o afeto na universidade e, sobretudo, sua condição de docente e pesquisadora
(...) Mas agora Angola voltou. Com tudo. De uma vez. Atravessando outras partes de mim. (...) Angola voltou com a escuta de professores de Cabinda – os quais eu devo tentar ajudar de alguma maneira, em uma parceria, em uma relação, por meio do Unisale, para tentarmos encontrar soluções para questões muito, muito complexas. Agora, Angola voltou. E meu pai diz que a pesquisa não é sobre meus avós, mas se é autoetnográfica, teórica e metodologicamente, se será sobre mim nessa relação com professores angolanos, se será sobre meu eu docente, meu eu pesquisadora, será também sobre meu eu que não lembra quando aprendeu que Luanda era a capital de Angola tanto quanto não lembra de não saber. E agora?
[Carolina Archer, narrativa de pesquisa. 28 de junho de 2021.]
Em 2021, os professores Clara Pango e Eduardo Pola, que atuam em escolas de zona rural na província de Cabinda, em Angola, procuraram o Unisale, projeto de extensão da Faculdade de Letras (Fale), que promove parcerias com o intuito de diminuir a distância histórica entre escola regular e universidade. Clara, alfabetizadora, e Eduardo, que leciona português e literatura no ensino médio, colegas no Instituto Superior de Ciências da Educação de Cabinda, detectaram um problema em comum em sala de aula: a dificuldade de lidar com estudantes que, naquela região, só na escola têm contato com o português – famílias, vizinhos e amigos só se comunicam nas línguas africanas de Angola.
A demanda dos professores da ex-colônia portuguesa encontrou, no momento e no lugar certos, a linguista Carolina Archer, neta de uma angolana e então mestranda recente na área da linguística aplicada. Ela viu na coincidência a oportunidade de não apenas contribuir para a solução da questão posta por Clara Pango e Eduardo Pola, mas também empreender sua pesquisa com base na autoetnografia. A metodologia é usada tanto na investigação quanto na apresentação dos resultados (que pode ser escrita ou visual, por exemplo), em que se descreve e analisa a experiência pessoal do pesquisador.
“É um método de pesquisa e performance. Meu objetivo foi entender o que acontecia comigo, como me movimentei e fui movimentada durante a pesquisa”, explica Carolina Archer. “Como diz Jorge Larrosa, filósofo da educação espanhol que é forte referência para o meu trabalho, a questão é perceber o que faz o pesquisador ‘tremer’, o que o afeta para além do óbvio. Meu papel era perceber a experiência acontecendo em mim.”
Valorização das línguas maternas
Durante um ano, a partir de meados de 2021, desenvolveu-se a parceria entre a pesquisadora da UFMG e os professores angolanos. As atividades, realizadas a distância, incluíram a elaboração de materiais didáticos e de instrumentos de capacitação de professores. O espírito dessa produção foi sempre o de criar dinâmicas entre os idiomas. Os alunos de Clara Pango foram estimulados a ensinar a ela alguns elementos de sua língua materna; nas aulas de Eduardo Pola, os estudantes conversavam sobre suas biografias linguísticas. “Essas atividades geraram mais trocas e maior engajamento, porque valorizavam as línguas faladas pelas famílias e os grupos sociais das crianças e jovens”, comenta Carolina, ressaltando que iniciativas como a que ela ajudou a implementar podem contribuir para reduzir a evasão na escola básica em Angola.
Em julho de 2022, a pesquisadora foi a Angola pela primeira vez. Estava acompanhada da avó, dona Maria Gabriela, que não havia voltado ao país desde sua saída forçada, 47 anos antes, por ocasião da guerra pela independência de Portugal. Elas estiveram apenas na capital Luanda, onde Carol encontrou seus parceiros, os professores de Cabinda. As emoções que envolveram essa visita à terra de sua avó tiveram, naturalmente, impacto significativo na pesquisa autoetnográfica.
“A metodologia dá ênfase ao singular, mas a conexão com Angola não é foco de todas as análises. Há outros aspectos importantes envolvidos, como o papel colonizador da universidade e a relação entre línguas tradicionais e a estrangeira”, explica Carolina, que lançou mão de um arsenal interdisciplinar que inclui análise do discurso, psicanálise, literatura, filosofia da educação e teorias pós-coloniais, entre outros campos teóricos.
Afetos na academia
Ao longo de todo o processo da pesquisa, Carolina escreveu narrativas sem qualquer sistematização: são textos de diversos tamanhos e que não seguiram tópicos nem intervalos predefinidos. Como ela diz, simplesmente “despejava” inquietações, angústias, reflexões. Quando voltou de Angola, parou tudo por cinco meses. “Isso foi fundamental para, mais tarde, eu olhar com distância para aquele material. Depois trabalhei com elementos como os da análise do discurso para entender o corpus formado pelas narrativas”, diz a pesquisadora, que foi orientada pela professora Valdeni Reis.
Os capítulos da dissertação não seguem a forma canônica – a autora optou por estrutura não linear, espiralada, com três capítulos dedicados às questões da autoetnografia, às línguas em Angola e à universidade. Ela afirma que se incomoda com a posição da academia, que “se coloca como numa torre e olha o mundo do alto”. “É uma instituição inalcançável, impessoalizada. É claro que a pesquisa tradicional, quantitativa e qualitativa, é necessária, mas é difícil encontrar trabalhos que investiguem a própria universidade, o que ela sente, quem são as pessoas ali, de onde elas partem, como são afetadas”, discorre Carolina Archer.
Ela recorre mais uma vez a Larrosa ao declarar sua preferência pela “universidade que se apaixona”. “Por essa visão, me sensibilizo diante do significado dos objetos – mais que isso, me comprometo com eles. Sou cativada pelo objeto, que me atrai e me prende. É preciso e possível conciliar rigor e afeto, porque pessoas fazem pesquisa com pessoas. Tenho uma história, trago uma carga comigo. É preciso olhar para os afetos, começar outros discursos.”
‘Texto com gente dentro’
A orientadora de Carolina no mestrado, professora Valdeni Reis, salienta que a pesquisa científica busca dados objetivos e muitas vezes se esquece do que está por trás. “As reflexões, angústias, incertezas e vulnerabilidades fazem parte do processo e têm muito a nos ensinar. É possível olhar pra nós mesmos na relação com o outro. O trabalho da Carol é um mergulho muito profundo numa outra forma de fazer a pesquisa, que propicia compreensão mais abrangente dos eventos e fenômenos que cercam o percurso”, ela afirma.
Carolina Archer conta que sempre teve interesse em outras formas de pesquisar e ficou orgulhosa do resultado, mas um pouco insegura com relação aos limites entre sua opção metodológica e o rigor científico. “A autoetnografia cresceu muito nos últimos cinco anos, mas ainda gera alguma polêmica. O trabalho foi muito bem recebido pela banca. Me senti uma equilibrista, mas acho que consegui apresentar uma dissertação que tem uma voz subjetiva, autoral. É um texto com gente dentro”, diz a pesquisadora. Carolina já encaminha os estudos do doutorado, em que vai tratar de políticas linguísticas na perspectiva das línguas maternas do continente africano.
Dissertação: Angola, meu t(r)emor: uma experiência autoetnográfica nos (des)encontros universidade-escola
Autora: Carolina Fernandes Archer
Orientadora: Valdeni da Silva Reis
Defesa: 24 de agosto de 2023, no Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos da UFMG